Doidinho (1933) é o segundo livro da trilogia da cana de açúcar (formada por Menino de Engenho, Doidinho e Banguê), que aborda as três fases do personagem principal, Carlinhos: a infância, a adolescência e o início da maturidade. Menino de Engenho termina com a iniciação sexual de Carlinhos aos doze anos, quando logo em seguida ele deixa o engenho para ir estudar na cidade de Itabaiana. Doidinho começa com a chegada de Carlinhos, agora Carlos de Melo, no internato dirigido por um diretor rígido, que sempre punia os alunos com castigo físico, pelos mínimos motivos.
Ainda caracterizada pelo tom memorialista de José Lins, onde a solidão e a melancolia do menino Carlinhos continuam presentes, nesta narrativa um novo mundo de descobertas e relacionamentos surge para "doidinho", como Carlinhos passa a ser chamado no internato. Nesse lugar, uma miniatura do mundo real, vários temas são abordados: lealdade, amizade, injustiças, traição, sexo, religião, preconceito e a nova perspectiva que o menino passa a ter com os estudos, pois passa a compreender melhor o contexto social da época: "os livros começavam a me ensinar a ter pena dos pobres".
Em Doidinho a figura do senhor de engenho continua imponente, marcando o poder e o prestígio do patriarca na região. Carlos, que sofre um pouco para se acostumar com a vida no internato, passa a ser respeitado pelos colegas e até pelo diretor (por um período) por conta de uma visita que seu avô, senhor de engenho, fez ao internato.
Enquanto no engenho havia a sinhá Totonha para povoar o imaginário das crianças com suas histórias, no internato havia o velho Coelho, descrito como "um narrador admirável, uma sinhá Totonha para os fatos comuns da vida", o que ressalta mais uma vez a importância das histórias no universo de José Lins.
Os livros foram responsáveis por descortinar o véu da ignorância que impedia Carlinhos de ver a dura realidade do engenho e, em vários momentos da narrativa, podemos notar essa tomada de consciência:
"O dono da terra fez mal à menina. Só fez encher a barriga da pobre; nem deu um vintém para os panos do filho. E foi indo, e foi indo, até que levou o diabo." ..."O dono da terra fizera mal. Os pobres lhe pagavam este foro sinistro - a virgindade das filhas".
Quando Carlos volta para o engenho durante as férias, já observa a realidade dos moradores com outros olhos, notando, talvez pela primeira vez, que a vida para aquelas pessoas era muito difícil. Ele observa também a vida das mulheres no engenho, e comenta um pouco sobre religião, pois sua primeira confissão ao padre de Itabaiana provocou reflexões sobre o que de fato acontecia ali e o que era considerado pecado pela igreja:
"Ouvira contar a história de Teresa Beiçuda, uma Pompadour de São Miguel. Tio Juca, o irmão mais moço de meu avô, fazia-lhe filhos todos os anos. Uma vez, numa festa da padroeira, a mulata apareceu de chapéu na igreja. Foram dizer a tia Neném. Era um atrevimento da cabra. E quando saiu da missa, dois escravos lhe rasgaram o chapéu de plumas na porta da igreja, lhe arrancaram as anquinhas da moda. Todos aqueles senhores de engenho faziam o mesmo que tio Juca. E eram homens de têmpera, limpos de honra, de respeito. Parecia-me que o padre de Itabaiana aumentava as coisas. Não tinham eles oratórios em casa? Não faziam promessas, não davam tanto dinheiro para as igrejas? Logo, Deus não os teria assim debaixo de suas iras. O velho Zé Paulino quando morresse só podia ir para o céu."
Outro fato que vale a pena mencionar é o papel do cinema na época, que mudou a vida das pessoas e que trouxe informações novas e novas visões de mundo, não sem causar certo estranhamento, e demonstrando a como era a condição da mulher na época:
"O cinema já nos era um incitante sem o qual não podíamos passar. Levávamos a semana discutindo as fitas, comentando os enredos. Corrigiam-se atitudes, emendavam-se situações, aprendiam-se mesuras da sociedade. Havia mulheres tentadoras vestidas na última moda, bem diferentes das mulheres que víamos na vida. Tudo era diferente naquelas existências. Os homens tinham outros modos. As mulheres saíam de casa sozinhas. Viram uma, brigando com o marido, dizer-lhe com a maior simplicidade deste mundo: 'Vou para a América!", como tia Maria diria: "Vou para o sítio do seu Lucindo". A gente daqueles lugares era mesmo de outro planeta".
Uma leitura prazerosa, com representações ricas dos homens e do contexto social do período açucareiro no nordeste.
José Lins do Rego. Doidinho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. 47ª edição.
2 comentários:
Que legal, Paula! Nem sabia que "Menino de Engenho" fazia parte de uma trilogia. Delícia de projeto!
bjo
Muito obrigada pelo comentário e pelo apoio, Michelle! Eu estou gostando muito de ler José Lins.
beijo,
Pipa
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