sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Escuro


A CARTA
(Ana Luísa Amaral)

Senhores:
hão de a dor e a ausência ter sabor,
um certo cheiro doce e demorado,
em forma de mil olhos

Pois vós olhastes essa minha ausência,
dissestes que dali criei palavras,
mas não por minha mão

Na vossa história, senhores,
eu fui só voz,
em vez de gente inteira

Inteira, nunca o fui,
dobrada ao meio pelo escuro das vestes,
pelas juras forçadas que cumpri,
pelo dever que me ditou meu pai

Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas,
eu, que as fui construindo devagar,
na escuridão da cela

O resto foi roubado por vós
e noutra língua,
e em mitos que vos eram
necessários

Não fui só voz:
fui eu, dona de mim,
porque as letras me foram, e o amor,
e o ódio vagaroso

Só para isso me valeu viver,
para compor, igual a sinfonia,
tudo o que considerei

Ele foi só palavras que em palavras forjei,
bigorna onde moldei espadas e lanças,
o lume necessário

Só não moldei
as grades da prisão onde vivi:
essas, moldastes vós
até incandescência

Mas eu, nas letras que compus,
eu inventei a ausência como mais ninguém.
Eu fui a mão da ausência
numa cela escura

E os atos dele foram-me as metáforas,
imagens a seguir-me, mais fortes
do que a vida.
Por isso me chamastes, senhores,
no vosso tempo, uma palavra nova e ágil:
literatura

E assim eu fui-vos voz,
e doce mito. E nada mais
vos fui

Quero dizer-vos hoje,
neste tempo tão escuro,
mas de um escuro diverso do que tive:
adeus

Deixai-me o escuro, o meu.
Porque ao lado da minha,
a vossa ausência, essa que em mim plantastes,
nada é.
Tomáreis vós saber o que é ausência

Ausência: eu: demorada nestas linhas.
Dizer com quanto escuro
a noite se desfaz
e se constrói -

AMARAL, Ana Luísa. Escuro. São Paulo: Iluminuras, 2015. p. 47-48.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Na esperança, o homem


Da cabeceira do rio, as águas viajantes
não desistem do percurso.
Sonham.

A seca explode no leito vazio
e a pele enrugada da terra seca e
sonha.

O barco espera.
O sábio contemplativo aguarda.
O homem, ao peso de qualquer lenho,
Não se curva.
Sonha.

Sonha e faz
com o suor de seu rosto,
com a água de seus olhos,
com a fluidez de sua alma,
cospe e cospe no solo
amolecendo a pedra bruta.

Faz e sonha.

E no outro dia, no amanhã de muitos
outros dias, a vida ressurge fértil,
úmida,
alimentada pelo seu hálito.

E que venham todas as secas,
o homem esperançoso
há de vencer.

Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017. p. 55-56.