segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A traidora honrada

Ganhei esse livro de uma amiga querida de presente de natal e fiquei curiosa para ler mais uma escritora que eu não conhecia e de um país que ainda não constava em minha lista de leituras.

A traidora honrada é um romance que aborda traição e mentira em um vilarejo durante o rigoroso inverno escandinavo. A escrita aguda e tensa de Jansson causa desconforto, estranhamento. O enredo conta a história de uma ilustradora, Anna Aemelin, que há anos morava sozinha em uma casa grande e mais afastada do vilarejo. Katri Kling é uma daquelas pessoas que sabe o que quer e faz o possível para conseguir. Katri tem 25 anos e é bem misteriosa. Em um lugar onde é comum ter olhos azuis, ela tem olhos amarelados e mora em cima de uma mercearia com seu irmão, Mats, dez anos mais jovem. É uma mulher determinada, que não gosta de nada nem de ninguém, exceto de seu irmão. Os dois costumam ler em silêncio, lado a lado, todas as noites. Katri é muito boa com números, tem um cachorro e o respeita, mas  não gosta muito dele, nem para lhe dar um nome. Já Anna é uma mulher tranquila, que durante a primavera gosta de sentar-se ao ar livre para observar a floresta e desenhar, e é muito respeitada em todo o vilarejo por sua gentileza. Quando a neve do inverno cobre todo o vilarejo, Anna já não sai mais para trabalhar. Isolada, acaba aceitando que Katri e seu irmão Mats se mudem para sua casa, após uma falsa tentativa de arrombamento da casa, que a deixa assustada. Com seu jeito silencioso e solícito, Katri acaba entrando de tal forma na vida de Anna que passa a cuidar até mesmo de seus negócios. A partir daí tudo muda na vida dessas personagens, que possuem uma visão de mundo completamente diferente. A narrativa é angustiante e intensa. e expressa o conflito entre duas pessoas tão diferentes, mas também discute o que é a honestidade e as muitas faces da traição.

Toda a história se passa durante um longo inverno no qual as duas mulheres, com base em mentiras, aquelas que contamos para os outros e aquelas que contamos para nós mesmos, travarão uma espécie de batalha pelos seus ideais e terão muitas ilusões desfeitas. 
É um romance desconcertante, diferente, que terminamos de ler sem saber ao certo o que se passou durante a leitura das 160 páginas que não conseguimos deixar de ler até o fim.
O livro não foi nada do que eu estava esperando, e ainda estou pensando sobre ele, mas valeu a pena conhecer mais uma escritora que é muito aclamada na Escandinávia. E que também criou os Moomins :-)

Tove Jansson (1914-2001) nasceu em Helsinque e pertencia à minoria de língua sueca que vive na Finlândia. Teve seu primeiro trabalho de ilustração publicado aos 15 anos, e quatro anos depois publicou um livro sob pseudônimo. Após temporadas estudando Belas Artes em Paris, retornou a Helsinque, onde, nos anos 1940 e 1950, ganhou renome por suas pinturas e murais. De 1929 a 1953, trabalhou com ilustrações de humor e charges políticas para a Garm, uma revista antifascista de esquerda publicada na Finlândia e na Suécia. Moomintroll, um personagem sonhador e com feições que lembram um hipopótamo -  a mais famosa criação de Jansson - fez sua primeira aparição nessa revista. As aventuras de Moomintroll e da família Moomin renderam uma duradoura série de quadrinhos e uma extensa coleção de livros infantis. Jansson também é autora de onze romances e de coletâneas de contos para adultos, entre os quais The Summer Book. Em 1994, ela recebeu o Prêmio da Academia Sueca. Seus livros foram traduzidos para 44 idiomas. 

Para ler o primeiro capítulo do romance, clique aqui.
Para ver o museu virtual da escritora, clique aqui.
Para ler uma reportagem da BBC (em inglês) sobre o centenário de Jansson, clique aqui.

JANSSON, Tove. A traidora honrada. Belo Horizonte: Autêntica; Rio de Janeiro: A Bolha Editora, 2012. Tradução: Guilherme da Silva Braga. Coleção Just a Bubble.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Nas tuas mãos

"Não sei fingir que amo pouco quando em mim ama tudo" (Vergílio Ferreira)

Nas tuas mãos é um romance sobre três vidas, três gerações diferentes de mulheres cuja intimidade e solidão são descritas por Inês Pedrosa com a delicadeza de uma escrita bem elaborada que comove o leitor e o aproxima dessas personagens, imensamente humanas em suas dores, sentimentos e ilusões. Jenny, Camila e Natália revelam, cada uma de uma forma, aspectos da época em que vivem ao contar a sua própria história; suas vidas também são marcadas pela passagem do tempo e pelas mudanças da sociedade, da mesma forma que foram marcadas por amores e perdas, vivências comuns a todos nós. Assim, o romance é dividido em três partes: o diário de Jenny, o álbum de Camila e as cartas de Natália.

O diário de Jenny começa a ser narrado a partir de 1935. Em uma época em que o único destino para as mulheres era o casamento e a criação dos filhos, Jenny aceita se casar com Antonio nutrindo todas as expectativas que a sociedade da época nela depositava. Mas o casamento acaba por ser um casamento de fachada: Antonio amava Pedro, seu grande amigo, e mesmo sabendo desse amor, pela vergonha de se separar e ter que enfrentar todos os julgamentos que uma mulher divorciada enfrentaria, Jenny aceita em silêncio a solidão que seu casamento de fachada lhe destinava. Conviviam os três em sua grande casa, sem que ninguém jamais desconfiasse que nunca havia se tornado verdadeiramente mulher de Antonio. O tom confessional do diário de Jenny nos comove e aproxima dessa mulher que viveu toda a sua vida em solidão, nutrindo um amor platônico por Antônio. Logo sabemos que Pedro, em uma de suas brigas com Antonio, se relaciona com uma judia francesa e a engravida. Fugindo dos nazistas durante a guerra, Danielle deixa sua filha, Camila, aos cuidados de Jenny e, pouco depois de ser presa, morre no campo de concentração de Dachau. Camila é cuidada por Jenny como uma filha verdadeira e só muito depois passa a saber a história de sua mãe biológica e seu pai. Jenny, vivendo sem ser amada, agarra-se à maternidade como uma forma de não enlouquecer em sua solidão. É para Camila que ela escreve o seu diário, para que a sua filha compreenda melhor as circunstâncias de sua vida.

"Não procures explicação para a minha vida, nem a tomes com pena ou escândalo; quando eu ficar tão velha que pareça louca, lê nestes cadernos que eu fui feliz. Não te preocupes como ou quanto, nem caias na tentação de distinguir amor e paixão: a pouco e pouco, fui vendo que essas divisões são armadilhas que se montam para que o pano caia sobre os nossos olhos e a imortalidade desapareça do nosso horizonte. O amor, Camila, consiste na divina graça de parar o tempo. E nada mais se pode dizer sobre ele" (pp.24-25)

A segunda parte do livro é o álbum de Camila, que gostava de fotografias talvez porque a única coisa que sabia de sua mãe biológica constava em uma fotografia deixada para ela antes de partir. Camila, que foi presa e torturada durante a ditadura, e deixou de sorrir durante muito tempo. As influências do feminismo permeiam todas as ações de Camila, desde a sua postura, sua forma de se vestir, a sua resistência à ditadura da beleza às leituras que fazia (O segundo sexo, da Simone de Beauvoir, e Virginia Woolf, por exemplo). 

Algum tempo depois, Camila conhece Eduardo e eles se apaixonam perdidamente. Mas o destino dessas mulheres parece mesmo ser a solidão, e Camila perde Eduardo de forma trágica. Depois disso, Camila vai trabalhar como correspondente em Moçambique, mais na tentativa de buscar para si mesma a morte do que para recomeçar uma nova vida. Em África conhece Xavier, um militante da Frente de Libertação de Moçambique, um homem que também mudará o seu destino.

"Com Xavier, deixei pura e simplesmente de pensar. Concentrei-me em escutar o sangue do meu corpo até que a sua voz fosse mais poderosa do que o silêncio dos mortos que o secavam. Foi assim que gerei Natália. A milha filha de África, mais do que de Xavier. Desta forma ele a desejaria: herdeira da imensidão mais do que da história trágica de um homem. Para o Xavier, a tragédia era apenas uma prova da veemência da vida." (p. 110)

O romance, de forma geral, é muito rico para pensarmos questões pertinentes ao feminismo, afinal é um livro narrado a partir da perspectiva feminina e fala da vida de três mulheres distintas em épocas diferentes. Em um ano em que mais uma vez a questão do espaço e da igualdade de oportunidades no mundo literário foi bastante discutida, é interessante observar a personagem Josefa Nascimento, uma escritora amiga de Jenny que "publicava romances policiais sob o pseudónimo de Joseph Birth. "Pus meu nome em inglês macho para vender bem", explicava ela, aos poucos a que confiara a sua existência paralela" (p. 33). Josefa, assim como Virginia Woolf, havia sido impedida pelo pai de frequentar a Universidade e só conseguia publicar a sua escrita, bastante feminista, usando um nome masculino.

A solidão de Camila, seu relacionamento com Jenny durante a velhice, a morte de Antonio, a partida de Pedro e a relação mãe e filha com Natália, de quem era muito diferente, são abordados no álbum de Camila, com grande melancolia.

"Pensei que as imagens me poderiam curar, que poderia colar os instantâneos do mundo sobre o sangue do meu coração e fazê-lo parar. Pensei que o amor podia ser domesticado e o lado negro do instinto maternal racionalizado. Pensei demais. Tudo está escrito nos espaços brancos que ficam entre uma palavra e a seguinte. O resto não importa." (pp.140-141)

A terceira e última parte são as cartas de Natália para Jenny, sua avó, de quem era bem mais próxima. Tentando reencontrar seu verdadeiro amor, Natália segue escrevendo para Jenny, mesmo depois da morte da avó. A filha mulata de Camila, que não conheceu o pai e que sofria preconceito por sua cor em Portugal, viaja para África em busca de suas origens. O racismo e o amor entre mulheres também são temas abordados nesse romance tão fascinante e apaixonado de Inês Pedrosa que, principalmente na última parte, observa com o olhar atento a vida das mulheres em Moçambique e a opressão que de formas diferentes as atingem. Um livro sobre mulheres e para (mas não apenas) mulheres, que nos faz pensar sobre feminismo, casamento, maternidade, sexualidade, relações familiares etc e nas histórias que carregamos conosco e que sempre serão parte de nós. E essa (re)leitura, seis anos depois de ter me apaixonado por essa história pela primeira vez, comprovou que Nas tuas mãos continua sendo um dos meus livros preferidos da Inês.


PEDROSA, Inês. Nas tuas mãos. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005. 222 páginas.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

As melhores leituras de 2014

O final do ano se aproxima e é hora de relembrar as melhores leituras de 2014 (quem não gosta de uma lista, não é mesmo?) 2014 foi um ano de muitos livros bons. Valeu muito a pena participar do Projeto Leia Mulheres, pois assim foi possível descobrir grandes escritoras. O projeto continua em caráter permanente no blog e sugestões de autoras e livros serão muito bem-vindas, é só deixar um comentário ;) O Projeto José Lins do Rego acabou não caminhando como eu previa, porque tive que ler outras coisas mais urgentes, mas pretendo continuar com a leitura das obras de José Lins, só que agora sem prazo determinado para acabar.
Selecionei alguns livros que me marcaram em 2014, mas o ano ainda não acabou e ainda tem livro bom para ler por aqui, então pode ser que mais algum apareça na minha lista final.

Todos os dias – Jorge Reis Sá

Autor português que eu li pela primeira vez esse ano e amei. Tem resenha sobre esse livro lindo aqui.

Mr. Gwyn – Alessandro Baricco

Baricco dispensa apresentações: é um dos meus escritores preferidos. Finalmente saiu a tradução tão esperada de Mr. Gwyn, que eu devorei de uma sentada só. Quem ainda não conhece a escrita incrível desse italiano precisa conhecer. Tem resenha aqui.

Para onde vão os guarda-chuvas – Afonso Cruz

2014 foi finalmente o ano em que li Afonso Cruz e só tenho uma coisa a dizer: foi amor à primeira página (ou melhor, desde os títulos lindos!). Para onde vão os guarda-chuvas foi um dos melhores livros do ano (e um dos melhores presentes que eu ganhei esse ano também), com uma edição que é uma coisa linda de se ver. E também não posso deixar de mencionar o excelente Jesus Cristo bebia cerveja que ganhou uma edição brasileira em 2014. [Resenha de Para onde vão os guarda-chuvas e Jesus Cristo bebia cerveja]

O lugar sem limites – José Donoso

Gostei muito desse livro pequenino, mas que dá muito o que pensar. Vale a pena ler esse escritor chileno, um dos grandes nomes da literatura latino-americana. [Resenha de O lugar sem limites]

Um teto todo seu – Virginia Woolf

Não é um romance, mas esse ensaio da Virginia Woolf é uma leitura fundamental. Merecia mesmo uma edição linda como essa publicada pela Tordesilhas em 2014. [Resenha de Um teto todo seu]

O corpo em que nasci - Guadalupe Nettel

Um livro realmente diferente, uma leitura que me marcou em 2014 e uma escritora de quem pretendo ler muitas obras (espero que mais livros da Nettel sejam traduzidos em breve).

No silêncio de Deus - Patrícia Reis

Patrícia Reis é uma escritora portuguesa que eu adoro e esse ano reli o maravilhoso Morder-te o coração e gostei muito de ler mais um livro da Patrícia Reis. [Resenha de No silêncio de Deus].

Um homem: Klaus Klump - Gonçalo M. Tavares

Gonçalo é simplesmente genial. Este é o primeiro livro da tetralogia O Reino, e os outros três livros serão lidos muito em breve. [Resenha de Um homem: Klaus Klump]

Hibisco Roxo - Chimamanda Adichie

Livro incrível dessa escritora nigeriana que já entrou para a minha lista de favoritas. Hibisco Roxo é um daqueles livros que só conseguimos largar quando chegamos ao fim. Um livro sobre o qual ficamos pensando durante muito tempo. [Resenha de HibiscoRoxo]

A filha do coveiro - Joyce Carol Oates

Não se assuste com o tamanho dos livros dessa estadunidense, ela costuma escrever calhamaços, mas é uma escrita que impressiona. Tem uma obra extensa e eu estou ansiosa para ler mais coisas dessa autora. [Resenha de Afilha do coveiro]

O Xará - Jhumpa Lahiri

2014 foi também o ano de ler a Jhumpa Lahiri, uma escritora inglesa descendente de indianos. Gostei muito de O Xará, um romance sobre identidade e a experiência de viver entre duas culturas. Não posso deixar de mencionar o livro de contos Intérprete de Males, do qual também gostei bastante. Uma escritora que definitivamente chegou para ficar. [Resenha de O Xará]

Este é o meu corpo - Filipa Melo

Filho único dessa escritora portuguesa, mas um livro muito envolvente. [Resenha de Este é o meu corpo]

Lucy - Jamaica Kincaid

Uma escritora caribenha que ainda não foi traduzida no Brasil, mas que merece muito ser lida. [Resenha de Lucy]

Persépolis - Marjane Satrapi

Finalmente eu li uma HQ. A que eu mais gostei foi Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi. Acho que para quem não tem o costume de ler quadrinhos com certeza é uma ótima opção para começar. (Mas eu ainda prefiro ler romances...). [Resenha de Persépolis]

E vocês, quais foram os melhores livros lidos em 2014? =)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O céu não sabe dançar sozinho

Para onde eu vou
Ferve a luz
Debaixo dos tectos
Há ontem e amanhã
Amores com pele de líquen
Sonhos azuis pelas esquinas
Ali não é preciso nada
Guardamos o lugar
Com palavras
(...).
Paula Tavares,
in "Como veias finas na terra" (2010)







O céu não sabe dançar sozinho é o mais recente livro de contos do escritor angolano Ondjaki, publicado no Brasil pela Editora Língua Geral (2014). Em Portugal o livro foi publicado pela Caminho com o título Sonhos azuis pelas esquinas (2014), uma referência ao poema de Paula Tavares citado acima. "Guardamos o lugar com palavras", por isso, cada conto tem como título uma cidade ou lugar que são, ao mesmo tempo, partida e chegada. É transitando pelo mundo que o escritor-poeta-viajante melhor exerce sua ocupação: guardar com palavras os detalhes de lugares e pessoas que passariam despercebidos para muitos. É através das viagens que as estórias surgem a partir da observação atenta do mundo e dos encontros inusitados com as pessoas, que no texto de Ondjaki estão envoltas em uma aura de magia e de sonho. Afinal, "há dias - e pessoas - que se revelam mais poderosos do que bons momentos de ficção", como nos lembra Ondjaki no conto de abertura do livro, intitulado Buenos Aires. É esse movimento pelo mundo, por aeroportos e locais tão diferentes, que enriquecem o olhar do poeta nesses contos singelos e delicados como é sempre a escrita poética de Ondjaki. Uma viagem interessante por lugares, reais ou imaginários, nos quais também nós, leitores, nos perdemos e nos encontramos. Um texto poético e terno que nos aproxima mais uma vez do autor de Os da minha rua, um dos meus livros mais queridos do escritor. É sempre uma delícia ler Ondjaki.

Para ler um dos contos do livro, clique aqui.

Ondjaki. O céu não sabe dançar sozinho. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2014.

Ondjaki nasceu em Luanda, em 1977, e mora no Rio de Janeiro. Prosador e poeta, também escreve para cinema e teatro. É membro da União dos Escritores Angolanos, membro honorário da Associação de Poetas Húngaros e membro fundador, mas não permanente, da Associação Protectora do Anonimato dos Gambuzinos. Está traduzido para o francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco, chinês, swahili e polaco. Vencedor do Prêmio Saramago 2013, do Prêmio FNLIJ 2010, do Prêmio JABUTI 2010, do Prêmio Grinzane for Africa Prize – Young Writer 2008, além de ter sido finalista dos Prêmios Portugal TELECOM 2007 e 2010. Com a Língua Geral publicou “Os da minha rua”, “E se amanhã o medo”, bem como o livro infantil “O leão e o coelho saltitão”.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Rosário Tijeras

Gosto de me aventurar em livrarias arriscando comprar um livro de um autor sobre o qual nunca ouvi falar. Deixar o livro me escolher e não o contrário. Quando me perguntam como eu faço isso, eu não sei o que responder. Intuição, talvez. Na maioria das vezes dá certo. Na maioria. Nunca tinha ouvido falar de Jorge Franco, mas a sinopse me pareceu interessante e, bom, tinha uma recomendação de Gabo na contra-capa.... Não me arrependi em nada de ter lido Rosário Tijeras, e fiquei com vontade de ler mais livros do autor.

Rosário Tijeras tem todos os elementos, não do realismo fantástico de Gabo, mas do realismo das favelas da Colômbia. O enredo conta a história de Rosário Tijeras (que em espanhol que dizer tesouras), uma mulher sedutora e perigosa, altamente passional, que teve sua infância destruída na vida cruel e brutal da periferia. Para sobreviver, Rosário aprende a se defender com a mesma violência do ambiente que a cerca.

Mas Rosário também é perigosa por enfeitiçar os homens com sua beleza, sua impulsividade, sua força. A "heroína" da história foge a todos os arquétipos: usa droga, se prostitui, mata muitas pessoas e se torna uma lenda. Mas tudo isso ganha um brilho especial ao ser contado através dos olhos apaixonados de Antonio, melhor amigo de Rosário e de Emílio (namorado de Rosário). É através dos olhos de Antonio que conseguimos ver, mesmo em meio a tanto caos e a uma narrativa tão intensa, a menina sofrida que é Rosário, fruto de um mundo que não lhe oferece muitas expectativas e repleto de violência, mas que também ama à sua maneira, e que sonha com uma vida melhor.

A história de Rosario é a história de Antonio, de seu amor por essa mulher que só o via como um amigo. É a história triste dos amores não correspondidos e dos estragos que eles deixam nos corações. Isso é muito bem retratado neste romance contemporâneo do colombiano Jorge Franco.

Gabriel Garcia Marquez disse que "Jorge Franco é um dos escritores colombianos para quem ele gostaria de passar a torcha". O que é um grande elogio. Não acho que ele seja um Gabo, talvez seja possível compará-lo com Gabo quanto à intensidade e a paixão dos personagens. Mas ele é certamente um grande escritor. Com uma narrativa muito envolvente, apesar de tratar de temas que tornariam qualquer romance muito "pesado" como assassinatos, drogas, prostituição, estupro etc, o amor de Antonio por Rosário "amortece" nossos olhares. Espere encontrar no livro muitos palavrões, usados para caracterizar o linguajar desse submundo. Mas espere encontrar também descrições românticas dessa paixão de Antônio por Rosário, paixão dessas de entregar a alma ao objeto desse amor.

FRANCO, Jorge. Rosário Tijeras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. 160 páginas.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Um caderno e tanto

Um caderno e tanto (traduzido em Portugal como O grande caderno) é o primeiro romance de uma trilogia (A prova e A terceira mentira), da escritora húngara Agota Kristof.

Agota Kristof nasceu em 30 de outubro de 1935, na Hungria. Quando o exército russo invadiu a Hungria em novembro de 1956, Kristof deixou o país com seu marido, que havia sido seu professor de história, e sua filha de quatro meses. Eles viajaram para Viena, com a intenção de imigrarem para os Estados Unidos, mas o medo e a incerteza da longa viagem os convenceram a ficar na Suíça. Agota trabalhou em uma fábrica de relógios onde lentamente aprendeu a falar francês, língua que adotou para escrever suas obras.Segundo a autora, ela precisou se apropriar de uma nova linguagem para poder existir no mundo.

Em 1986 publicou Um caderno e tanto (Le Grand Cahier), seu primeiro romance, aos 51 anos. O romance foi um grande sucesso e foi traduzido para quarenta idiomas. Teve várias adaptações para o teatro na Europa e também foi adaptado para o cinema (Le Grand Cahier, The notebook, 2013), filme dirigido por János Szász. Agota viveu em Neuchâtel, na Suíça, até sua morte em 27 de julho de 2011.

Um caderno e tanto conta a história de dois irmãos, gêmeos que, em pleno final da Segunda Guerra Mundial, recebem do pai um caderno no qual devem escrever todos os acontecimentos que vivenciarem e a incumbência de fazer de tudo para sobreviverem. A mãe, sem condição de alimentar e cuidar dos filhos sozinha, pois o marido foi para o exército, leva os filhos para a casa da mãe, com quem não falava há muito tempo. Não sabemos o motivo, provavelmente a suspeita que paira sobre a avó de ter envenenado o avô. Logo percebemos que a avó é uma bruxa, sem demonstrar absolutamente nada de amor pelos netos. Pelo contrário, passa a tratá-los como escravos, quase sem comida e vivendo em condições precárias de limpeza e proteção contra o inverno rigoroso da região. No livro não encontramos nenhuma informação que contextualize o lugar e a época, mas subentende-se que seja o final da Segunda Gerra e o local seja a Hungria, com base na própria experiência da autora.

Longe da mãe e convivendo com uma avó tão má, os gêmeos tornam-se monstros e passam a fazer de tudo: chantagear, mentir, roubar, matar. Passam a realizar exercícios estranhos para aprenderem a suportar a dor, a fome, o frio, a falta de amor ou de qualquer sentimento que os humanize. Eles passam a ser o espelho de tudo o que a guerra faz com os seres humanos, ou de tudo o que estava acontecendo ao seu redor: uma demonstração de que quando o que nos resta é o instinto de sobrevivência, já perdemos toda e qualquer moral.

Os gêmeos passam então a demonstrar uma grande frieza em relação a tudo o que acontece. São capazes de ajudar alguém que precisa, mas não por terem qualquer sentimento pelo outro, afinal não querem nenhuma gratidão, mas oferecem ajuda a pessoas que precisam como a vizinha, uma menina com lábio leporino que mora com a avó, uma velha considerada louca por todos. As duas vivem de esmolas e a menina é molestada sexualmente em vários momentos, inclusive pelo padre da região, que lhe oferece dinheiro para que fique em silêncio. Os gêmeos então chantageiam o padre para conseguir mais dinheiro para a menina durante o inverno, ajudando-a a sobreviver. Há uma lógica estranha no que fazem, como a jovem moça que trabalha na igreja e se oferece para lavar as roupas dos dois, pois andavam muito sujos e sem banho na casa da avó. Por trás desse ato de bondade, há também o assédio que sofriam dessa mesma mulher durante os banhos semanais. 

Em outro momento, os soldados na rua arrastam para um trem um grupo de pessoas muito debilitadas, que compreendemos ser judeus. A jovem mulher da igreja humilha um dos prisioneiros oferecendo-lhe um pedaço de pão e depois negando a oferta, divertindo-se com a situação degradante em que estavam. Não sabemos se por esse motivo, ou se por conta dos abusos que sofriam, os gêmeos colocam uma munição que encontraram junto a um cadáver na floresta entre a lenha que levavam para a mulher que lavava suas roupas. Depois de uma grande explosão, ela fica desfigurada e, pouco tempo depois, morre.

Os dois meninos passam a ser governados por uma moral própria, se é que podemos dizer que isso seja moral, e fazem "justiça" com as próprias mãos, como no caso da moça da igreja e do padre, e de forma muito estranha se recusam a ir embora com a mãe quando ela retorna para buscá-los. Os dois agora querem continuar ali, com a avó. Já não são os mesmos meninos que chegaram, já se desumanizaram. Quando a mãe morre ao pisar em uma mina, não demonstram qualquer emoção. Para eles, o sentimento de amor que sentiam pela mãe é algo que os enfraquece para a dura tarefa de sobreviver.

Eu diria que o livro é um "caderno do mal", onde tudo de pior e mais grotesco e brutal parece estar presente. Foi impossível não pensar nos relatos dos sobreviventes dos campos de concentração e o que narraram sobre o absurdo da experiência do holocausto. A violência, em todos os sentidos do termo, está presente no texto, na escrita simples de Kristof, que ainda estava aprendendo o francês quando escreveu o romance e se assemelha à escrita das crianças, mas o olhar frio que descreve coisas tão absurdas de forma natural e banal nos estraçalha. De forma semelhante aos relatos dos sobreviventes, esse romance nos faz pensar, citando Primo Levi: é isto um homem?

Slavoj Žižek, quando perguntado sobre um livro que mudou a sua vida, respondeu que foi "Um caderno e tanto". Não foi um livro que mudou a minha vida, nem acho que seja um livro que deva inspirar condutas. Mas certamente foi uma leitura angustiante, inquietante, que provocou muito desconforto. Ainda estou pensando sobre o livro e o que sinto em relação a ele; sobre a brutalidade estranha da escrita simples de Kristof, que nos fala de uma crueldade que nos assombra e choca e, ao mesmo tempo, nos faz seguir lendo até o final. Talvez para sentirmos algum conforto por estarmos longe de tudo isso, em segurança. Talvez para evitar que tudo isso ocorra outra vez. Não é um livro que recomendo a qualquer leitor,  pelos temas que aborda, com certeza é um livro para corações e estômagos fortes. Mas foi interessante ler uma escritora húngara que é considerada uma das grandes representantes da literatura francófona.

Para ler uma entrevista em inglês com Agota Kristof, clique aqui.
Para ver o trailer do filme Um caderno e tanto, dirigido por János Szász, clique aqui.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Lucy, de Jamaica Kincaid




Elaine Potter Richardson nasceu em 1949 em  St. John, Antígua e Barbuda. Filha única, ela mantinha uma forte ligação com a sua mãe até completar nove anos, quando o primeiro dos seus três irmãos nasceu e toda a atenção da mãe e da família se voltaram para os filhos varões. O senso de isolamento, a pobreza, o colonialismo e esse sentimento ambíguo em relação à mãe, que passou a preterir a filha por ser mulher, marcam a escrita forte de Elaine Potter Richardson (Jamaica Kincaid). Sua escrita denuncia a opressão do colonialismo e da sociedade patriarcal e possui uma raiva latente, inspirada nas tensões de sua adolescência. Aos 17 anos, a autora mudou para os Estados Unidos para fugir da pobreza e do destino de submissão e opressão destinado às mulheres em sua terra natal e começou a trabalhar como au pair. Trabalho que realizou por cerca de três anos, enquanto estudava em uma escola comunitária. Depois de estudar para ser enfermeira por um tempo, ela abandona os estudos e começa a trabalhar escrevendo entrevistas para uma revista voltada para o público adolescente. É então que muda seu nome para Jamaica Kincaid, com o objetivo de conseguir escrever com mais liberdade, como uma forma de fazer as coisas sem ser a mesma pessoa que não podia fazê-las - a mesma pessoa que carregava todo esse peso". Destituída desse "peso" que seu nome carregava, ela começa a escrever.

"a way for [her] to do things without being the same person who couldn't do them -- the same person who had all these weights". (Kincaid)

"If I hadn't become a writer I don't know what would have happened to me; that was a kind of self rescuing." Jamaica Kincaid
Lucy é o terceiro romance dessa escritora caribenha e não podemos deixar de falar de sua própria vida antes de entrar propriamente no enredo do romance, uma vez que há fortes traços autobiográficos em sua escrita. Uma escrita que pode ser imaginada e sentida, em toda sua simplicidade e lirismo, como uma escrita do entre-lugar, pois a personagem Lucy, protagonista do romance, deixa sua terra natal, uma ilha colonizada pelos ingleses, para fugir do passado, de suas raízes tão presas a uma sociedade patriarcal e colonial que oprime as mulheres e não lhes oferece melhor destino que viver trabalhando para a família e para ter filhos. Porém, ao mesmo tempo em que quer fugir de suas raízes, Lucy também não se reconhece em seu novo lugar, um lugar tão diferente de tudo o que sempre conheceu. As diferenças, desde o clima, aos objetos, à forma de se relacionar em família, e à forma de perceber o mundo e se expressar, estão constantemente causando estranhamento em Lucy, que contesta e questiona tudo o que lhe incomoda.  Lucy se permite sentir o que a situação lhe causa. A família aparentemente perfeita onde trabalha como au pair cuidando das crianças logo começa a se destroçar, assim como a aparente adaptação de Lucy ao novo país, onde é sempre vista como "a pobre visitante", "aquela que veio para servir", e sua indiferença em relação à sua família. É interessante perceber a imagem já estabelecida que pessoas como Lucy carregam ao chegar em países colonizadores. Por narrar a trajetória dessa personagem desde a adolescência até a idade adulta, retratando seu amadurecimento e a descoberta da sexualidade, Lucy é considerado um romance de formação. 

A escrita de Jamaica Kincaid é muito envolvente e aborda emoções e questões complexas, apesar do seu estilo ser considerado simples. É um livro importante na literatura pós-colonial e nos faz questionar visões pré-estabelecidas. É um livro que cutuca o leitor com sua prosa lúcida e provocativa, com questionamentos muito interessantes sobre gênero, e principalmente, sobre essa visão eurocêntrica que ainda prevalece no mundo contemporâneo. É compartilhando as emoções, por vezes conflitantes, da personagem que percebemos a importância de ter acesso a esse outro olhar, e a essas novas perspectivas na literatura.

Para ilustrar, transcrevo um trecho do romance, quando a patroa de Lucy, Mariah, contempla encantada um campo de flores (Daffodils = narcisos amarelos) que não são encontradas na terra natal de Lucy e que demonstra essa diferença de perspectiva: Mariah compreende a emoção de Lucy diante das flores como emoção e contentamento diante de tanta beleza. Mas o que Lucy está sentindo, e o que Kincaid apresenta ao leitor, é o desconforto de Lucy, sua raiva diante de flores que ela nunca havia visto na vida, mas sobre a qual teve que aprender na escola, decorando poemas imensos, porque faziam parte da vida do colonizador, mas não da sua. Essa "admiração" imposta de uma cultura sobre a outra, por meio da força e de relações de poder. Mariah tenta abraçar Lucy, que se afasta recusando o abraço, e com isso recupera a sua voz. Ela diz a Mariah o que sente ao ver os daffodils (narcisos amarelos). E lamenta que a mesma coisa provoque lágrimas por motivos diferentes nelas duas:

"Mariah, mistaking what was happening to me for joy at seeing daffodils for the first time, reached out to hug me, but I moved away, and in doing that I seemed to get my voice back. I said, "Mariah, do you realize that at ten years of age I had to learn by heart a long poem about some flowers I would not see in real life until I was nineteen?"

As soon as I said this, I felt sorry that I had cast her beloved daffodils in a scene she had never considered, a scene of conquered and conquests; a scene of brutes masquerading as angels and angels portrayed as brutes. This woman who hardly knew me loved me, and she wanted me to love this thing - a grove brimming over with daffodils in bloom - that she loved also. Her eyes sank back in her head as if they were protecting themselves, as if they were taking a rest after some unexpected work. It wasn't her fault. It wasn't my fault. But nothing could change the fact that where she saw beautiful flowers I saw sorrow and bitterness. The same thing could cause us to shed tears, but those tears would not taste the same. We walked home in silence. I was glad to have at last seen what a wretched daffodil looked like." (KINCAID, 1990, p.23)
Jamaica Kincaid atualmente vive nos Estados Unidos, entre Vermont e Califórnia, e tem dois filhos. É professora de escrita criativa na Universidade da Califórnia. Já publicou diversos romances, entre eles The Autobiography of My Mother (1996), My Brother (1997), A Small Place (1988), Annie John (1983), My Garden (Book) (1999), Talk Stories (2001), Seed Gathering Atop the World (2002), See Now Then (2013). Infelizmente, nenhum deles foi traduzido para o português AINDA. Vamos torcer para que isso ocorra em breve.

KINCAID, Jamaica. Lucy. New York: Farrar, Straus, and Giroux, 1990.

domingo, 23 de novembro de 2014

A filha do coveiro


O romance narra a história de Rebecca Esther Schwart, filha de imigrantes que chegaram aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra fugindo do nazismo. A família de Rebecca, composta pelo pai, Jacob Schwart, pela mãe Anna Schwart e seus dois filhos, chegou de navio no porto de Nova York. Na chegada ao porto Rebecca nasce ainda no navio, após horas de parto muito sofridas para sua mãe. É nos Estados Unidos que a família busca recomeçar a vida e pouco se sabe sobre o que aconteceu antes da viagem em sua cidade natal, mas fica claro, desde o início, pelo comportamento abalado da mãe e do pai, que eles passaram por situações bem traumáticas.
Sem dinheiro algum e com o estigma de ser "judeu", Jacob Schwart encontra emprego como coveiro no cemitério da cidade, e passa a viver com sua família no chalé dentro do cemitério. A pequena casa, em péssimas condições, representa a precariedade da vida daquela família, totalmente destruída e transformada pelos horrores da guerra. O preconceito marca cada um deles desde sua chegada aos Estados Unidos, onde tentam recomeçar e buscam ser esquecidos pelos demais, como se a invisibilidade pudesse dar a eles alguma segurança. A mãe de Rebecca está deprimida e ausente; os dois filhos ajudam o pai nos afazeres do cemitério e Rebecca é o tempo todo desprezada pelo pai, por ser menina. As questões de gênero são muito fortes nessa história e a violência contra a mulher está presente em toda a narrativa, aliás, é um tema recorrente na obra de Joyce Carol Oates.
A narrativa não é linear e mescla presente e passado para, aos poucos, ir revelando a complexidade das personagens. Começamos conhecendo Rebecca, uma jovem que trabalha em uma fábrica nos Estados Unidos, próxima ao vilarejo onde mora com o filho e é casada com um homem que está sempre viajando "a trabalho". Ganhando muito pouco pelas horas de trabalho na fábrica, onde sofre assédio dos colegas por ser mulher, Rebecca está constantemente apavorada e em estado de alerta, com medo de que algo ruim possa lhe acontecer. É o medo compartilhado pelas mulheres ao voltar para casa sozinhas; é o medo de que o marido a culpe pelo acontecido, porque ainda vivemos em uma sociedade que culpa a vítima pela violência sofrida.
A primeira parte do livro mostra exatamente como Rebecca se sente, e podemos acompanhar o que ela pensa nesse trajeto diário da fábrica para a sua casa, compartilhando sua angústia e o medo que sente. Só mais adiante o leitor compreende o porquê desse medo, e assim ficamos presos na narrativa de Joyce, que nos aproxima imensamente da vida das suas personagens.
Em seguida, voltamos um pouco ao passado para compreender a história trágica da família de Rebecca, com os traumas da guerra e a vida sofrida que levaram nos Estados Unidos. A violência da guerra e o que ela faz com os homens fica bem representada em Jacob e Anna, que nunca mais conseguem ser o que foram um dia. As marcas do sofrimento serão para sempre visíveis nos dois que, mesmo nos Estados Unidos, convivem com o medo de serem descobertos ali. O preconceito dos estadunidenses que desprezam essa família sem ao menos tomar conhecimento dos seus sofrimentos deixa marcas profundas nas personagens. Sofrimento que se transforma em agressividade e loucura, que destrói as relações familiares dos Schwart. Rebecca, sempre desprezada por ser mulher, é a que mais se parece com o pai na inteligência e na esperteza. Mas o destino das mulheres era o casamento, e não os estudos, e assim Rebecca vê seu desejo de continuar progredindo da escolha frustrado. Os outros dois filhos varões de Jacob não são muito inteligentes, são incentivados pelo pai a abandonar a escola e a se dedicar unicamente ao trabalho. Por conta disso, são constantemente rejeitados e humilhados pelo pai, que desconta nos filhos e na mulher a raiva que sente pelo que passou, pela frustração de ter um trabalho muito diferente do trabalho intelectual que desempenhava em sua cidade natal. A frustração pela impotência diante do mal vivenciado na guerra acaba por se transformar em violência e agressividade e culminará com o abandono da vida.
Depois de um trágico incidente, a órfã Rebecca segue vivendo sozinha, contando com a ajuda de colegas, mas ela carrega a história dessa família consigo, o que inevitavelmente afetará muito sua vida. Rebecca começa a trabalhar como camareira em um hotel, onde conhecerá seu marido, Tignor. A possibilidade de trabalho para as mulheres ao longo da história é sempre restrita a cargos subalternos, marcados pela invisibilidade e muito sujeitos a todo tipo de violências, desde o desrespeito básico aos direitos das trabalhadoras à violência física a que estão constantemente submetidas por serem mulheres. A violência contra a mulher está presente no ambiente de trabalho como se fosse inerente à função, e também aparece com muita força no ambiente doméstico. As mulheres acumulam duas jornadas de trabalho, contribuem com uma parte substancial do orçamento doméstico, o que reflete uma realidade não muito distante da atual.
A violência é um elemento importante na narrativa de Joyce, que constrói personagens que nos fazem questionar pontos importantes referentes ao gênero: a violência doméstica, a violência no ambiente de trabalho, a desigualdade na remuneração entre homens e mulheres pelo mesmo trabalho e, o que considero mais importante, a possibilidade dessas mulheres resistirem à violência  que enfrentam e de recomeçar. Joyce dá voz àqueles que não conseguem falar para expressar sua dor e seu sofrimento.
O livro é dividido em três partes: o prólogo nos apresenta a Rebecca operária e já casada; a primeira parte nos apresenta a história da família de Rebecca e tudo o que aconteceu com eles desde sua chegada de navio aos Estados Unidos, assim como o relacionamento de Rebecca com seu marido, marcado por cenas fortes de violência. A terceira parte do livro, que é sim uma narrativa de fôlego (são 600 páginas), conta a vida de Rebecca e do filho e sua tentativa de recomeço fugindo das agressões do marido.
A filha do coveiro é um livro que envolve o leitor e que aborda todas essas questões mencionadas a partir da perspectiva feminina e, por isso, proporciona uma reflexão interessante que merece ser lida. Recomendo.

OATES, Joyce Carol. A filha do coveiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. 600 páginas. 
***

Joyce Carol Oates é uma escritora norte-americana e tem 76 anos. É autora de algumas das obras de literatura mais significativas da atualidade. Agraciada com os prêmios norte-americanos National Book Award e o The Pen/Malamud Award for Excellence in Short Fiction, é membro da Academia Americana de Artes e Letras e titular de cátedra na Universidade de Princeton, Nova Jersey, onde leciona desde 1978.
É tida por vezes como uma das personalidades favoritas ao prêmio Nobel da Literatura, surgindo em diversas listas de finalistas veiculadas pela imprensa. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

BookadayBrazil - Novembro


Pipa não sabe voar e O Pintassilgo convidam para o #BookadayBrazil do mês de novembro. Um livro por dia, de acordo com os critérios listados acima. Não esqueçam de usar a hastag  #BookadayBrazil para marcar suas fotos e participar da brincadeira. Vamos? :)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Um quarto para ela


"É um privilégio preparar o lugar 
em que outra pessoa vai dormir." 
Elizabeth Jolley

Antes de começar a falar do enredo desta história, gostaria de falar um pouco de minha história com esse romance. A primeira leitura ocorreu uns três anos atrás, logo que o livro foi lançado no Brasil, quando me deparei com uma capa bonita, com flores singelas, e o título delicado que me fez pensar em uma história bonita de amizade. A leitura, no entanto, não foi tudo o que eu esperava naquele momento, o livro não me falou ao coração, fiquei perturbada com aquela história. Tanto que me desfiz do livro em uma troca no skoob. Se não tivesse sido por obrigação, talvez eu nunca o tivesse relido, mas estou feliz de que isso tenha acontecido. Principalmente porque me mostrou que há um tempo certo para ler cada livro e que o que sentimos em relação a um livro também muda junto conosco.

Um quarto para ela de que fala o título é o quarto que Helen, uma jornalista/escritora de 64 anos, que vive em Melbourne, Austrália, prepara para receber sua amiga Nicola, que está com câncer. Nicola vem de outra cidade (Sidney) para fazer um tratamento e pede para se hospedar na casa da amiga por três semanas. Helen não fazia ideia do estado de Nicola até ela chegar no aeroporto, pois a comunicação que mantinham por telefone e emails ocultava muito da gravidade da situação. Muito debilitada, Nicola chega à casa de Helen e conta dos tratamentos alternativos que vai fazer e que vão “expulsar” o câncer de seu corpo.  Tudo indica que os médicos disseram a Nicola que não há mais nada que a medicina tradicional possa fazer para combater o câncer, além de ajudá-la a controlar a dor que sente. Mas Nicola está em negação e quer acreditar que tratamentos como o de uma clínica clandestina, que na verdade está explorando as pessoas em sofrimento, irá salvá-la.

Helen faz todo o possível para acomodar a amiga, recebendo-a com carinho, trocando as roupas de cama várias vezes durante a noite, cozinhando, limpando, e também está exausta por conta das muitas noites sem dormir. Cuidar de alguém doente é fisicamente e emocionalmente cansativo.  Mas o mais desgastante para Helen tem sido lidar com o sorriso falso de Nicola, a máscara de alegria que a amiga carrega no rosto mesmo nos momentos mais terríveis da doença, fingindo que tudo vai ficar bem, porque não consegue aceitar que a morte está próxima. Porque sente que falhou por não ter tido a vida que a sociedade esperava dela: Nicola não se casou, não teve filhos, foi sempre uma mulher feliz e independente, e que cultivou muitos amigos. E com isso podemos pensar na violência desse discurso que oprime as mulheres durante toda a vida, de que só são completas se casarem, se tiverem filhos, mesmo que tenham construído coisas muito importantes, mesmo que tenham, como Nicola, estabelecido relações de amizade que também são raras.

Entre a angústia de ver a amiga sendo enganada por uma clínica fajuta, que explora pacientes terminais dando-lhes uma falsa esperança, e a dificuldade de lidar com a negação de Nicola, um amigo conta a Helen que talvez Nicola tenha vindo até sua casa porque quer que ela seja a pessoa que lhe diga a verdade e que a ajude a aceitar a doença.

Um quarto para ela é um livro triste, alguns podem considerá-lo "pesado" porque é mesmo difícil falar da proximidade da morte e de uma doença tão sofrida sem o ser. Na casa de Helen, que se enche de alegria e vida com a netinha que lhe visita com frequência, o espaço passa a ser outro, mais pesado e sombrio, espaço de alguém que se despede da vida e de sua própria história. Helen sofre por não poder ajudar mais a amiga, que em sua fase de negação e numa tentativa pouco eficaz de manter sua dignidade diante da dor, pouco pede ajuda. São essas duas forças que estão em jogo na história, assim como acontece em nossas vidas. Enquanto a presença da neta lhe traz nova força e energia, a presença da amiga doente também dá a Helen uma maior consciência do envelhecimento do seu próprio corpo e isso nunca é algo fácil de lidar.

Na primeira leitura que eu fiz, anos atrás, creio que julguei demais a personagem e sua atitude no final perante a amiga doente. Mas hoje, apesar de acreditar que eu faria diferente, se é que podemos prever como nos comportaremos em situações assim, passei a compreender o que Helen nos conta sobre essa história, sobre seus próprios limites, sem tentar julgá-la tanto. Apesar de perceber no livro uma dose de culpa por sua decisão de não cuidar mais da amiga doente.

Apesar de ser um livro triste, é um livro que faz pensar sobre a vida, sobre a morte, para a qual nunca estamos preparados, e sobre a amizade e seu papel fundamental na vida das pessoas, às vezes maior até do que a própria família. E é um livro que assume com coragem o direito que todos temos de respeitar os nossos próprios limites em situações difíceis. E como todo livro que fale sobre a morte, ele nos faz pensar o que faríamos nessa mesma situação, tanto a de Nicola quanto a de Helen, fazendo-nos pensar sobre o valor que temos dado à vida. Nesse sentido, é uma leitura que vale a pena, assim como creio que valeu a pena para a autora, que trouxe muito da sua própria experiência pessoal cuidando de uma amiga com câncer para essa narrativa..

GARNER, Helen. Um quarto para ela. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O que amar quer dizer

 "É preciso tempo para compreender o que amar quer dizer"

LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

domingo, 14 de setembro de 2014

Este é o meu corpo


O corpo de uma mulher é encontrado após um telefonema anônimo para a delegacia. Está desfigurado na beira de uma estrada, com os pés amarrados e sinais de violência. O médico legista é chamado para descobrir o que aconteceu e ajudar a polícia a desvendar o caso. É esse médico legista, cujo nome desconhecemos, que contará a história, que é a história desse corpo e o que ele revela, e também a história de outras pessoas, do médico inclusive, e suas vidas envoltas em solidão. Intercalando as vozes narrativas do médico durante a autópsia e dos demais personagens que, aos poucos, vão se entrelaçando, Filipa Melo constrói uma história incrível para nos falar de solidão, de violência e também da morte, destino inevitável de todos nós. O silêncio dos personagens, que não sabem expressar seus sentimentos e sofrem e vivem em solidão e em silêncio, é algo fundamental nessa narrativa. Foi mesmo brilhante a ideia da autora de ter um corpo, já sem vida, a contar esse enredo, a desvendar esses silêncios. É o silêncio do pai de Eduarda, que sem saber como lidar com a perda da mulher, por quem nunca expressou o seu amor, que afasta cada vez mais a filha com a sua dificuldade de afeto e contato físico. É Alda, a mulher de Jacinto, o assassino, que sofre em silêncio a opressão de um casamento frustrado e sem amor, onde o diálogo nunca existiu. Jacinto, que a abandona por alguns meses, movido por uma paixão avassaladora por Eduarda, retorna ao lar depois de tudo, e é aceito sem questionamentos. Miguel, colega de trabalho de Eduarda, que há anos nutre seu amor por ela em silêncio, e o sofrimento que sente ao saber que a perdeu, sem nunca ter lhe confessado seu amor. Mais uma vez são os silêncios que falam mais que os personagens. O médico legista, com toda a descrição dos passos da autópsia que faz no corpo de Eduarda, estabelece uma relação quase poética com esses corpos, com os quais lida diariamente, refletindo sobre a vida mais do que sobre a morte, como se com eles pudesse dialogar. 
A força do texto de Filipa impressiona, tanto nas descrições tão precisas da necropsia, quanto na paixão que coloca no trabalho desse médico que, em sua vida pessoal, também sofre de imensa solidão, sem conseguir estabelecer com os outros nenhuma relação. À medida que conhecemos a história de Eduarda, a mulher que foi assassinada poucos dias após dar à luz a um menino em um dos hospitais da cidade, pelo próprio amante e pai da criança, por estar inconformado com o fim do relacionamento, vamos nos envolvendo mais e mais na história. Sim, senhoras e senhores, é desses livros que lemos de uma sentada só. Acho que pode ser considerado um romance policial, porque ficamos grudados no livro até o fim querendo saber a história dessa mulher que perdeu a vida, mas mais importante que o desfecho de uma história policial, onde tudo se resolve e o assassino é preso, aqui o que prevalece é a história de cada uma dessas vidas, seus silêncios e sua solidão.
Gostaria de ver outro livro da Filipa Melo por aí, vamos torcer para que a autora publique mais. Por esse livro de estreia só podemos esperar coisas boas.

MELO, Filipa. Este é o meu corpo. São Paulo: Planeta, 2004.

Filipa Melo nasceu em 1972 na cidade de Silva Porto (atual Cuito), em Angola. Jornalista e escritora, o seu romance "Este é o Meu Corpo" foi acolhido com grande entusiasmo pelos leitores e pela crítica, unânime em considerá-lo uma das revelações literárias da ficção portuguesa no ano de 2001.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Revolução em Dagenham (2010)


Dagenham, Inglaterra, 1968. Na fábrica Ford da cidade, Rita O'Grady (Sally Hawkins) é uma das 187 mulheres que trabalham como costureiras fazendo o revestimento dos bancos dos carros produzidos pelos 55 mil homens que são considerados a "força de trabalho", aqueles que fazem o trabalho mais qualificado e importante para a empresa. Cansadas de não serem reconhecidas pelo trabalho qualificado que desenvolvem e por ganharem menos que os homens pelo mesma hora de trabalho, as 187 operárias decidem reivindicar os seus direitos. As mulheres nunca haviam entrado em greve antes, apenas apoiado seus maridos, pais, e filhos operários durante as greves que eles iniciaram em busca de melhores condições de trabalho. A princípio, elas não são levadas a sério, como infelizmente costuma acontecer, mas quando a produção de carros precisa parar porque não há mais bancos prontos, fica evidente a importância do trabalho das mulheres nessa engrenagem industrial. Enfrentando uma oposição opressiva neste "mundo dos homens", Rita reúne as colegas a fim de lutar por igualdade salarial — uma atitude que desafia o status corporativo, ameaça o casamento dela, e finalmente, cobra um preço alto. Porém, com o apoio do administrador da fábrica (Bob Hoskins) e da Secretária do Trabalho (Miranda Richardson), as mulheres se tornam a sensação da nação — e as catalisadoras de uma mudança decisiva. Um desses filmes inspiradores, que nos faz refletir sobre a condição da mulher no mercado de trabalho e sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres exercendo as mesma funções, algo que ainda precisa mudar. Esta é uma história baseada em fatos reais e que mostra um ótimo exemplo de que essa mudança é possível. Recomendo muito.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

#BookadayBrazil - Setembro


A tag #BOOKADAYUK foi criada pelo site We love this book e tem sido compartilhada no Instagram, no Twitter e em outras redes sociais. A Juliana, do blog O Pintassilgo, e eu decidimos traduzir a tag, fazendo algumas adaptações para deixá-la um pouco mais brasileira. =)
Para participar, é só seguir a lista acima, que contém um desafio para cada dia, e postar a foto de um livro que esteja de acordo com o respectivo dia do mês de setembro em uma das redes sociais, não esquecendo de marcar sua foto com a Tag #BOOKADAYBRAZIL. Não deixe de compartilhar com os seus amigos e vamos falar sobre livros :-)

O Pintassilgo no twitter, no facebook e no Instagram :)

Pipa não sabe voar no twitter, no facebook e no Instagram :)

domingo, 31 de agosto de 2014

Um poema de Marina Tsvetáieva

Para meus versos, escritos num repente,                              
Quando eu nem sabia que era poeta,
Jorrando como pingos de nascente,
Como cintilas de um foguete,

Irrompendo como pequenos diabos,
No santuário, onde há sono e incenso,
Para meus versos de mocidade e morte,
- Versos que ler ninguém pensa! -

Jogados em sebos poeirentos
(Onde ninguém os pega ou pegará)
Para meus versos, como os vinhos raros,
Chegará seu tempo.

Marina Tsvetáieva
Maio de 1913.


Marina Tsvetáieva (1892-1941), filha de um professor de história da arte da Universidade de Moscou e de uma musicista, demonstrou muito cedo seu talento para a poesia, da qual hoje é considerada um clássico. Antes da publicação de sua primeira coletânea de poemas Álbum da tarde (1910), saudada pela crítica como uma revelação, já havia escrito grande número de poemas, alguns deles em alemão e em francês, línguas que ela dominava: a primeira pela ascendência materna, a segunda pelo amor pelas letras francesas que lhe infundira seu preceptor, ambas, pelas muitas viagens realizadas em sua primeira mocidade. Nascida e crescida no ambiente da intelligentsia russa que a admirava (são famosas as paixões que ela inspirou a Ossip Mandelchtam e Boris Pasternak), foi desde cedo uma anticonformista. Órfã de mãe (1906) e de pai (1913), casou-se antes dos 20 anos, quando da publicação de sua segunda coletânea, igualmente bem recebida, Lanterna Mágica (1912), com um jovem que viria a ser um oficial do Exército Branco, a quem dedicou os poemas do ciclo O Acampamento dos Cisnes (1917) e de quem teve duas filhas (a segunda morreu de inanição) e um filho. Emigrada para o estrangeiro em 1922, a fim de reunir-se ao marido, viveu na Alemanha, Tchecoslováquia e França por dezessete anos. Apesar de ser "um lobo branco" (uma isolada) também para a emigração russa, Tsvetáieva produziu incansavelmente. "Na vida e na arte", disse dela Pasternak, "Tsvetáieva aspirou sempre, impetuosamente, avidamente, quase com rapacidade, à fineza e à perfeição e, ao persegui-las, atirou-se muito à frente, superou a todos...". Em 1939 Marina voltou com o filho à Rússia, onde já estavam o marido e a filha, que não conseguiu reencontrar (a filha fora condenada a oito anos de trabalhos forçados, o marido, à pena máxima). Em 1941, no auge da invasão nazista, evacuada junto com o filho para a cidade de Elábuga, suicidou-se em 31 de agosto. 

(Informações retiradas da edição brasileira de Indícios Flutuantes)

Tsvetáieva, Marina. Indícios flutuantes (poemas). São Paulo: Martins Fontes, 2006. Prefácio, tradução e seleção de poemas Aurora Fornoni Bernardini.

sábado, 30 de agosto de 2014

O Chão dos Pardais

O chão dos pardais é um livro sobre o poder e como ele determina as relações humanas. Para Dulce Maria Cardoso, esse chão dos pardais, pássaros rasteiros que podiam buscar o céu, mas que ficam sempre pelo chão ou pelas árvores, é uma metáfora da humanidade. E são esses sentimentos mundanos que são trabalhados por Dulce Maria Cardoso em uma narrativa envolvente na qual as vidas dos personagens se entrelaçam, mostrando-nos que nem sempre é possível se libertar tão facilmente dessas relações de poder.

Afonso é um homem de quase sessenta anos, rico e poderoso, casado com Alice, pai de dois filhos, Clara e Manuel, já adultos. O casamento de Afonso e Alice é um casamento de aparências, pois os dois praticamente não dialogam e fingem simplesmente aceitar a rotina e esse pacto social, como um grande teatro a ser representado diariamente, ainda que todos saibam, inclusive Alice, das muitas amantes mais jovens de Afonso. Em uma das muitas viagens de negócios que ele usa como pretexto para viajar com amantes, na verdade mulheres  bonitas e jovens que se prostituem em troca de presentes caros e hotéis e restaurantes de luxo, conhecemos Sofia, a mais recente "amante" contratada por Afonso. Sofia está noiva de Júlio, um homem bom que a ama verdadeiramente e de quem ela também gosta, mas ninguém sabe muito bem sobre o trabalho de Sofia e o que ela faz (e também ao que se submete)  durante as viagens de negócios. Sofia está noiva de Júlio e sabe que precisa contar a verdade para ele, para que ele saiba quem ela é e para que possa amá-la por completo. Mas Sofia não imagina a tragédia que a verdade desencadeará.

Alice é uma dessas personagens que despertam nossa compaixão, pois está mais preocupada com as aparências do que com o próprio relacionamento com o marido ou com os filhos, dos quais ela pouco sabe. Consegue ser muito cruel com Eugênia, uma mulher que nasceu no mesmo dia que ela, mas que teve um destino bem diferente por ser filha dos empregados da família. Eugênia trabalhou a vida inteira para a família de Alice e já aprendeu a tolerar em silêncio a sua crueldade, sabendo que os filhos de Alice, Clara e Manuel, tem mais amor por Eugênia do que pela própria mãe. Alice tem uma vida solitária e vazia, e no decorrer da história está mais preocupada em organizar uma grande festa de aniversário para comemorar os sessenta anos de Afonso e causar inveja em todos da alta sociedade. Alice decide contratar Gustavo, um professor de história que escreve biografias para que ele escreva a biografia de Afonso como seu presente de aniversário para o marido. Enquanto isso, Elisaveta, que enfrentou a fome e o frio em seu país (um país imaginário do Leste), do qual conseguiu fugir (e para isso teve que passar por um grande sofrimento) começa a trabalhar na casa de Alice auxiliando Eugênia nas tarefas domésticas. Apesar de quase não falar a nova língua, Elisaveta se esforça ao máximo para agradar e fazer tudo certo, pois finalmente tem um lugar quente para dormir e algo para comer todos os dias, o paraíso para quem, como ela, já sofreu muito. Alice sempre tentou negar ou fingir não saber que Clara é lésbica, mas Clara encontrou o apoio materno de que precisava na figura de Eugênia. Quando Clara conhece Elisaveta, ela se apaixona perdidamente pela nova empregada  e passa a frequentar muito mais a casa da mãe para poder conversar, dentro das limitações do idioma, e conhecer um pouco mais Elisaveta, que acaba por também se questionar pelo que sente por Clara, algo novo que ela nunca tinha imaginado poder sentir. É muito delicada a forma com que a Dulce Maria Cardoso descreve a descoberta e a aceitação do sentimento entre as personagens.

Já Manuel, o filho médico de Alice e Afonso, está sendo processado por negligência e, por conta das influências e do poder financeiro do pai, há grandes chances de ser inocentado. Manuel tem um relacionamento online com Lily, uma mulher divorciada, mãe de um filho, que mora do outro lado do mundo. Os dois mantêm uma comunicação intensa pela internet e julgam estarem apaixonados, até o dia em que se conhecem pessoalmente e percebem que as expectativas e o que imaginaram são muito diferentes da realidade. Com esse casal, a autora nos permite refletir sobre a fragilidade dos relacionamentos modernos, nesse mundo líquido e virtual, porém também efêmero.

O chão dos pardais é um livro intenso, por vezes doído, com personagens que nos fazem refletir sobre pequenos eventos cotidianos, pequenos, porém cheios de importância e significado, e que poderiam passar despercebidos não fosse o olhar atento de Dulce Maria Cardoso que, com uma escrita encantatória, fala dos silêncios e segredos que entrelaçam as vidas, e também do poder das histórias (e de acreditarmos nelas).

Cardoso, Dulce Maria. O chão dos pardais.  Porto: Edições Asa, 2009. 


Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964, na mesma cama onde haviam nascido a mãe e a avó. Tem pena de não se lembrar da viagem no Vera Cruz para Angola. Da infância guarda a sombra generosa de uma mangueira que existia no quintal, o mar e o espaço que lhe moldou a alma. Regressou a Portugal na ponte aérea de 1975.  Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, escreveu argumentos para cinema, gastou tempo em inutilidades. Também escreveu contos. Tem fé, uma família, um punhado de amigos, o Blui e o Clude. Continua a escrever e a prezar inutilidades. Vive em Lisboa.
Publicou em 2001 o seu romance de estreia, Campo de Sangue, Grande Prêmio Acontece, escrito na sequência de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Desde então publicou os romances Os Meus Sentimentos (2005), prêmio da União Europeia para a Literatura, O Chão dos Pardais (2009), prêmio Pen Club, e O Retorno (2011). É autora de duas antologias de contos: Até Nós (2008) e Tudo São Histórias de Amor (2014). Os seus primeiros dois livros infantis, na coleção A Bíblia de Lôá, foram publicados em 2014. Em 2012, foi condecorada com as insígnias de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras da França. A sua obra está publicada em quinze países e é estudada em diversas universidades. Alguns dos seus contos e romances foram adaptados ou encontram-se em fase de adaptação para cinema e teatro. (Dados biográficos extraídos do site da Wook).
Entrevista da autora sobre o livro O Chão dos Pardais: Aqui

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Persépolis

Persépolis pode ser considerado um romance de formação em quadrinhos no qual a ilustradora iraniana Marjane Satrapi conta a sua própria história e também um pouco da história de seu país. Radicada na França, a ilustradora criou Persépolis para contar a sua história e a história de seu povo para seus amigos europeus que, assim como nós, desconhecemos a complexidade da história iraniana, seus costumes e tradições. Durante a leitura vamos nos dando conta de que muito do pouco que sabemos é uma grande simplificação, estereótipos que reduzem as pessoas e suas histórias a muito pouco. 

O livro começa com Marjane ainda pequena, aos dez anos, na escola em Teerã, narrando em primeira pessoa como foi que com a Revolução Islâmica houve uma retomada bastante conservadora aos costumes antigos, por exemplo, tornando-se obrigatório novamente o uso do véu pelas mulheres, a separação entre meninas e meninos na escola, entre outros.

Marjane, filha de pais modernos e intelectuais, teve a chance de ter acesso a muitos livros, e a ter uma visão contrária ao regime extremista em vigor, por conta do respaldo que tinha da família e da boa situação financeira de que dispunham. Por conta disso, Marjane teve a chance de manifestar sua rebeldia dentro dos limites possíveis em Teerã. A leitura aparece como ponto de apoio e possibilidade de crescimento no decorrer de toda a história.

As figuras femininas como a mãe a avó de Marjane tem grande importância na narrativa e é através da perspectiva social das mulheres que podemos refletir sobre a condição social da mulher não apenas nos países islâmicos. Por trás dos véus, passamos a conhecer essas mulheres reais, suas histórias, seus sonhos, suas crenças e questionamentos, e também seu sofrimento diante da opressão, em suas variadas formas.

A dualidade espaço público x espaço privado pode ser pensada ao longo da narrativa, pois vemos que as limitações e a opressão religiosa existente predominava nos espaços públicos, ao passo que havia uma liberdade maior entre as personagens nos espaços privados. Em suas casas, os iranianos faziam festas frequentemente, consumiam bebidas alcoólicas e tinham mais liberdade para falar e agir, algo oposto à repressão exterior, o que certamente os ajudou a sobreviver em circunstâncias tão difíceis.

Com a guerra, os pais de Marjane decidem que, para protegê-la, é melhor que ela se mude para a França, para poder continuar estudando. É assim que Marjane, uma adolescente de 14 anos, passa a conhecer uma outra realidade, muito diferente do seu país de origem. Na França, a liberdade que ela encontra nos espaços públicos ela perde nos espaços privados. Longe da família e de sua cultura, Marjane enfrenta uma nova realidade: a de ser estrangeira, muitas vezes sofrendo o preconceito e a discriminação que a simplificação resultante de estereótipos e do acesso a uma história única provocam, algo que constantemente é compartilhado pela mídia e tomado como verdade.

Nesse período na França, Marjane está em busca de si mesma, tentando não se perder diante do novo e aprendendo a lidar com as transformações de seu corpo adolescente. O desenvolvimento do corpo das mulheres no decorrer da história nos ajuda a pensar nas diferentes exigências em relação ao corpo, principalmente o corpo feminino, pela sociedade. Nos quadrinhos de Marjane vemos que esse corpo não se reduz ao corpo biológico, mas ao corpo cultural, definido por sua situação social.

Marjane passa por muitas dificuldades durante os anos em que mora na França e, no final, sem ter onde morar, fica vagando pelas ruas em pleno inverno e acaba por adoecer. Depois de ser tratada em um hospital francês, decide voltar para casa, mas esse período traumático que passa nas ruas é silenciado pela dificuldade que sente em o narrar, principalmente para os pais. De volta à Teerã, Marjane não consegue contar muito sobre a sua vida na França, mesmo com a recepção calorosa da família, e acaba por ficar deprimida. Agora ela também se sente uma estrangeira em seu próprio país, pois as experiências que a transformaram e as vivências que teve no exterior são muito diferentes da realidade da guerra daqueles que ficaram no Irã.

Todo o processo de readaptação dessa adolescente, agora uma mulher, ao voltar para casa e se confrontar novamente com as tradições nos possibilita novas reflexões. As discussões sobre o casamento, por exemplo, retomam a dualidade espaço público x espaço privado, pois os casais não podiam andar juntos pelas ruas se não fossem casados, e mesmo os casados tinham que apresentar sua certidão de casamento para isso. É a impossibilidade de viver publicamente seu namoro com o jovem Reza que leva Marjane a aceitar o casamento, para tempo depois se divorciar. Apesar do apoio da família, que aceita sem problemas o divórcio, uma mulher divorciada não é vista com bons olhos pela sociedade iraniana, pois já não são mais virgens e passam a ser abordadas constantemente, pois são consideradas disponíveis para qualquer homem. Após o divórcio, e por orientação dos pais, Marjane retorna à França em definitivo, onde reside até hoje.

Persépolis é um romance em quadrinhos que traz ótimas reflexões e aprendizado sobre um outro universo, que a maioria de nós desconhece, nos faz pensar sobre os perigos de se acreditar em uma história única e simplificada sobre os outros e que, além de tudo, é uma leitura deliciosa.

SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 352 páginas.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Hibisco Roxo

Em Hibisco Roxo, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie conta a história de uma família nigeriana bem sucedida e aparentemente "normal". E por normal aqui eu quero dizer aparentemente feliz. O patriarca da família, Eugene, é um homem rico, que possui várias indústrias e é dono de um dos principais jornais locais. Eugene é um dos homens mais poderosos e respeitados na comunidade e na igreja católica que frequenta, muito em virtude de todas as doações generosas que faz para ajudar a igreja e muitas pessoas da comunidade. Ele é tido como um modelo a ser seguido por sua moral e conduta. Eugene é casado com Beatrice e tem dois filhos: Jaja e Kambili, ambos adolescentes. Os dois estudam em excelentes escolas e moram com os pais em uma casa grande, com todo o conforto que a maioria dos nigerianos desconhece. 
Mas em casa Eugene é um tirano que adora ordem e detesta ser contrariado no que quer que seja, e sempre controla cada passo dos filhos e da esposa. O clima de medo, silenciamento e opressão que reina na casa pode ser observado nos momentos tensos em que se reúnem para as refeições ou para ir à missa. As crianças crescem ouvindo que precisam ser perfeitas, que tem que ser as primeiras de suas turmas e vivem em constante pânico por isso. Estão em constante estado de alerta preocupadas em agradar o pai. 
A religião tem uma grande importância para Eugene, que age de forma obsessiva em nome do discurso religioso. Mas o discurso religioso, quando não é posto em prática nas ações do dia a dia, só gera destruição. Essa é a história de uma família que vai se destruindo por conta a intolerância religiosa e da violência doméstica, pois Eugene renega seu próprio pai por ele não ter se convertido à religião "branca" dos colonizadores que ele foi ensinado a seguir rigorosamente e que agora tenta a todo custo impor aos filhos e à esposa. É também um livro que nos permite analisar a situação da mulher em um tempo não muito distante do nosso, pois ainda hoje muitas mulheres vivem em função do casamento, guiadas pela pressão social que valida a existência de uma mulher somente se ela se casar e tiver filhos. Beatrice, que vive em função do marido e dos filhos mesmo sofrendo de violência doméstica, ainda acha que uma mulher sem marido não é nada. No decorrer da história acompanhamos seu sofrimento em silêncio a cada espancamento que sofre do marido pelas mínimas coisas, surras tão violentas que a fazem abortar diversas vezes, impedindo-a de ter mais filhos e debilitando seriamente sua saúde. O sofrimento dos filhos ao vivenciar tudo isso, crescendo em um ambiente onde ninguém sorri ou conversa, provoca neles sentimentos confusos, que misturam o amor que os filhos naturalmente sentem pelo pai, com o terror de vê-lo como principal causador de seus medos e sofrimentos.
Mas também temos nessa história uma personagem que traz um pouco de alívio depois de tantas páginas em que sofremos juntos com essa família: a tia Ifeoma, irmã de Eugene, uma professora que ficou viúva de um homem que sempre a respeitou nunca a agrediu, e que mostra que há mais caminhos para as mulheres do que o casamento. É com amor e liberdade de diálogo, ensinando aos filhos e sobrinhos a questionarem o mundo e dizer o que sentem, buscando o conhecimento através da educação,  que Ifeoma consegue ajudar Jaja e Kambili a se libertarem da opressão em que vivem.
Um livro que eu gostaria que todos lessem, por todas as coisas que ele nos faz sentir e pensar. Uma história linda, sofrida, mas com toda a poesia das descrições quase que sensoriais de Chimamanda Adichie, que nos transporta pelas ruas da Nigéria, onde podemos sentir o cheiro do caju e dos hibiscos roxos. Não sei recomendá-lo o suficiente. Leiam!

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 324 páginas