domingo, 31 de dezembro de 2017

Minhas melhores leituras de 2017



Mais um ano chega ao fim e chega também o momento de toda leitora/leitor que se preze fazer o balanço das melhores leituras. Quem não gosta de uma lista, não é mesmo?
Não li tanto quanto gostaria em 2017, e em grande parte foi poesia, sempre meu maior consolo, mas segue a minha listinha do que li de melhor esse ano:

Como se fosse a casa (uma correspondência) (Ana Martins Marques e Eduardo Jorge)

O Martelo (Adelaide Ivánova)

Da poesia (Hilda Hilst)

Poemas da recordação e outros movimentos (Conceição Evaristo)

Dia bonito pra chover (Lívia Natália)

Os bons amigos (Hannah Kent)

Dois (Oscar Nakasato)

Amora (Natália Borges Bolesso)

Aqui, no coração do inferno (Micheliny Verunschk)

A guerra não tem rosto de mulher (Svetlana Aleksiévich)



E que 2018 seja um ano mais leve, de muitas realizações e leituras incríveis para nós!


terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Dia bonito pra chover



Insurreição

Seria mais fácil não amar os pessegueiros macios
e nada sorver do seu perfume,
mas os meus dentes querem a carne do seu corpo,
minha língua deseja lamber do seu sumo.

O certo seria plantar a semente e esperar,
dos laços e nós dos caules finos,
aspergir-se o perfume da fruta vindoura.
Mas meu corpo tem pressa
e não respeita os relógios que inventam o tempo.

Minha natureza é temporã.
Eu sou das fêmeas que vão!
ficar é para quem tem raízes,
ceder é para quem deseja morada: eu sou o desabrigo.
Quero a fruta furtada do pé.
comer seu gosto ainda verde,
morder suas entranhas ainda duras.

Não sou das que esperam,
sou das que não querem nem chegar,
sou de partir e, no precipício, ainda ser silenciosa,
inteira.
Sou uma destas mulheres que vão.
ficar é raiz.
partir é imensidão.


Lívia Natália. Dia bonito pra chover. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Os bons amigos




Ambientado na Irlanda do século XIX, Os bons amigos, da escritora australiana Hannah Kent, retrata a vida da época, seus costumes, superstições e tradições, em uma pequena vila no interior do país. O romance é baseado em fatos reais e a narrativa nos transporta para os anos 1825 e 1826, uma época em que as crenças e superstições tinham um grande poder no dia a dia das pequenas comunidades, que viviam em condições insalubres e sem muita informação. A medicina da época não era muito avançada e a figura de mulheres parteiras e conhecedoras do poder medicinal das ervas era muito presente na própria sobrevivência dessas comunidades. Nesse sentido, esse romance fala de crenças e  das ligações ancestrais das mulheres com a natureza. Mas nada é tão simples assim.

Três personagens são centrais nessa narrativa: Nóra, uma mulher que acabou de ficar viúva e que recentemente também havia perdido a filha para uma doença misteriosa, ficando sozinha a cargo de cuidar de sua pequena fazenda e do neto, um menino de 4 anos que também estava muito doente, sem conseguir andar ou falar. A segunda personagem é Mary, uma menina de um vilarejo próximo e de família muito pobre, contratada por Nóra para ajudar nas tarefas da casa e nos cuidados com o neto doente. A terceira é Nance, uma senhora idosa que há anos chegara ao vilarejo e que vivia de doações em troca dos seus conhecimentos de ervas mediciais e outras superstições locais, quase sempre associadas à cura. Com a chegada do novo padre ao vilarejo, a vida de Nance fica cada vez mais difícil, uma vez que, buscando livrar a comunidade do paganismo dessas superstições e de aproximar os moradores um pouco mais da Igreja, ele passa a pregar contra os hábitos, associados à bruxaria, praticados por Nance.

A vida dessas três mulheres de idades diferentes se une em torno do pequeno Michaél, que retorna ao lar da avó após a morte da filha de Nóra. Para tristeza da avó, o menino está muito diferente do garoto saudável que era, com os membros deformados e sem conseguir falar ou andar. O médico consultado diz que não há mais nada a fazer em relação ao menino, a não ser se conformar com a sua nova condição de saúde. Mas Nóra, estimulada pelas conversas e lendas locais sobre os seres encantados que habitam a região e roubam as pessoas para outros mundos, deixando substitutos no lugar, procura Nance para resgatar o verdadeiro neto do mundo encantado. 

Mantendo um clima de suspense ao longo de todo o romance, Hannah Kent consegue narrar com brilhantismo uma história que, como se sabe por pesquisas históricas feitas pela autora, relata um caso real ocorrido na Irlanda, e propõe com isso uma reflexão muito interessante e mais do que atual sobre o poder da crença e das superstições no trato das diferenças. Fiquei absolutamente encantada com a escrita da autora, tão cheia de lirismo e que manteve esta leitora aqui presa ao livro do início ao fim, tanto que Os bons amigos entrou para a minha singela lista de melhores leituras de 2017. Recomendadíssimo.

***

Hannah Kent. Os bons amigos. São Paulo: Globo Livros, 2017. Trad. Celina Portocarrero.

*Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Sorteio: FOME


Um exemplar de "FOME: Uma autobiografia do (meu) corpo", de Roxane Gay;
3 canetinhas + 3 marcadores de livro fofos

Para participar do sorteio é só preencher o formulário abaixo com seu nome e email, seguir o instagram do blog @pipanaosabevoar e marcar três amigos na postagem oficial do sorteio no instagram.

As inscrições podem ser feitas até o dia 20/12/2017, apenas através deste formulário, e o sorteio será realizado no dia 21/12/2017, às 10h. Sorteio válido apenas para residentes no Brasil. Boa sorte! :)

Link para o Instagram: http://instagram.com/pipanaosabevoar
Link do sorteio https://goo.gl/forms/vG6oMjCEhWeBWhyt1

O resultado será informado no blog:
http://pipanaosabevoar.blogspot.com.br/

RESULTADO DO SORTEIO:  a vencedora é Estela Pereira dos Santos =] Estela, vou entrar em contato por email com você. Obrigada a todas por terem participado! Até o próximo!

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Fome



Our silence will not protect us.
Audre Lorde

Entre as muitas palavras que imediatamente vem à mente para descrever esse livro, a mais forte é, sem dúvida, coragem. Escrever sobre um trauma e ter a bravura de narrá-lo como Roxane Gay faz nas páginas de Fome: uma autobiografia do (meu) corpo, que acaba de ser publicado pela Globo Livros, é um passo importante para todas que sobreviveram a uma violência tão terrível quanto a sofrida pela autora. Logo no primeiro parágrafo do livro, Roxane afirma:

“A história do meu corpo não é uma história de triunfo. Esta não é uma autobiografia sobre perda de peso. Não haverá uma foto da minha versão magra, meu corpo esbelto adornando a capa deste livro, eu de pé dentro de uma das pernas do jeans de quando eu era mais gorda. Este não é um livro que irá oferecer motivação. Eu não tenho nenhum insight poderoso quanto ao que é necessário para superar um corpo e um apetite indisciplinados. Minha história não é uma história de sucesso. Minha história é simplesmente uma história verdadeira”.

Este é um livro-grito, um livro-corpo; é a voz de alguém que tenta lidar com os eventos traumáticos do passado, que deixaram marcas profundas com as quais é preciso aprender a conviver e isso não é um processo fácil; é também um livro-afirmação, que revela com muita sinceridade a dor causada pelas imposições de nossa sociedade sobre os corpos das mulheres, sobre a gordofobia que causa tanto sofrimento a inúmeras pessoas mundo afora. Explico: aos doze anos, Roxane Gay, uma menina negra e de classe média vivendo nos Estados Unidos, foi violentada por um grupo de garotos da escola. Como acontece a muitas crianças, meninas e mulheres, Roxane calou-se diante de tamanha violência. E sofreu com esse segredo por anos.
Mantendo silêncio sobre o estupro que sofreu, sentindo-se culpada (pois infelizmente a sociedade em que vivemos nos ensina a sentir culpa, mesmo quando somos vítimas), Roxane não diz nada aos pais ou aos amigos. Cada vez mais introspectiva, ela encontra na comida um consolo, uma fuga, um espaço de proteção. Alguns estudos com vítimas de violência sexual indicam o aumento de peso (e também os transtornos de ansiedade, insônia, depressão, entre outros) como um sintoma comum. Para Roxane, como para muitas mulheres, comer compulsivamente e engordar bastante foi uma forma de se proteger e de ficar invisível aos olhos dos homens e, portanto, livre de sofrer outra violência sexual, uma vez que deixou de ser "desejável" de acordo com os padrões esperados dos corpos femininos.
“O que você tem de saber é que a minha vida é dividida em duas, repartida de forma não muito caprichosa. Há o antes e o depois. Antes de engordar. Depois de engordar. Antes de ser estuprada. Depois de ser estuprada”. (p. 19)

            É importante destacar que a compulsão alimentar é um comportamento inconsciente e, mais importante ainda para refletirmos sobre a gordofobia e os padrões tão violentos impostos principalmente às mulheres é nos perguntarmos: por que ser gorda é ser invisível? Acho que essa é uma pergunta chave que o livro deve despertar em nós.
Nem sempre o corpo gordo foi estigmatizado como ocorre nos dias de hoje, onde em todos os cantos há informações sobre uma nova forma de emagrecer, uma nova dieta do momento, por mais absurda e violenta que seja; há sempre um novo discurso que faz com que as mulheres estejam sempre insatisfeitas com seus corpos, numa busca por um padrão quase sempre impossível de alcançar. E isso causa grande sofrimento. É bom lembrar que o corpo gordo era valorizado na Idade Média como sinal de poder e ascendência, só para dar uma amostra de como esses padrões flutuam com o tempo e de acordo com certos interesses (Georges Vigarello fala mais sobre isso no livro As metamorfoses do gordo). Com o tempo, as normas nas sociedades ocidentais passaram a ser cada vez mais exigentes em relação à aparência pessoal e corporal, refletindo também as desigualdades de gênero entre homens e mulheres na medida em que as cobranças em relação ao corpo feminino passaram a ser muito mais severas. Vale a pena perguntar a quem interessa manter as mulheres insatisfeitas consigo mesmas, sempre odiando seus corpos, e fazendo tudo o que for possível para atingir o padrão de magreza estabelecido como o desejável.
É relevante ter em mente também que nem todas as pessoas gordas vivenciaram alguma violência e que nem todas as vítimas de violência serão gordas. Esta é a história de Roxane, na qual ela encontra, através da escrita e do feminismo, a sua verdade. Mas há muitas outras pessoas gordas, lutando para serem felizes com o corpo que tem, apesar dos embates diários que precisam travar para se aceitar em um mundo que a todo instante diz que uma pessoa gorda é sinal de doença, de fracasso, de falta de vontade, de anormalidade, de feiúra. Ainda estamos longe de chegar a ser um mundo de respeito pelas diferenças em todos os sentidos, de respeito ao outro, de aceitação. Mas há muitas mulheres inspiradoras por aí, mostrando que é possível resistir a essa busca por conformidade. Nesse ponto, o livro me incomodou em alguns momentos pelo enfoque negativo dado a esse corpo gordo, mostrado por vezes como um empecilho. Tem muita gente aí mostrando o contrário. Contudo, entendo também que faz parte desse relato mostrar o processo vivido por Roxane, de passar por momentos de assimilar o discurso negativo sobre o corpo gordo com o qual somos todas bombardeadas diariamente, e também os momentos de resistir a esse discurso, de combatê-lo. E o feminismo serve de força nesses momentos.

 “Mesmo sendo tão jovem, eu compreendia que ser gorda era ser indesejável para os homens, ter o desprezo deles, e eu já sabia demais sobre o desprezo deles. Isso é o que ensinam à maioria das garotas – que devemos ser magras e pequenas. Não devemos ocupar espaço. Não devemos ser vistas e ouvidas, e, se somos vistas, devemos ser uma visão agradável aos homens, aceitáveis na sociedade. E a maioria das mulheres sabe disso, que nós devemos desaparecer, mas isso é algo que tem de ser dito de forma ruidosa, repetida, para que possamos resistir a nos render àquilo que esperam de nós”. (p. 18)


Fome é um livro extremamente honesto, e por isso mesmo, muitas vezes sofrido de se ler, no qual a autora fala sobre os traumas, as dores, os medos, as dificuldades que enfrenta diariamente por ser uma mulher negra e gorda (e também bissexual), desde os problemas para encontrar roupas, às dificuldades de estar em alguns espaços, aos comentários ofensivos e cruéis que tem que ouvir sobre seu corpo. Mas é também sobre os sonhos de Roxane, seu encontro com a escrita, pois sempre foi uma aluna brilhante, sobre seu percuso de resistência diante das dificuldades. A fome de que fala Roxane não é apenas por comida, e sim uma fome de muitas coisas que ela deseja poder fazer e construir. E do ponto de vista da violência sofrida, ser capaz de contar essa história de forma crua e intensa é um grande passo para a autora e para outras muitas mulheres que podem encontrar nesse livro uma inspiração para romperem o silêncio que, como diz a Audre Lorde, não vai nos proteger. Vale a leitura.


Roxane Gay é autora do best-seller do New York Times, vencedora de diversos prêmios de prestígio. PhD em Comunicação pela Universidade Técnica do Michigan, Roxane, além de escritora e palestrante, é editora e professora de Escrita Criativa na Universidade de Purdue. Atualmente mora em Lafayette, Indiana, e, de vez em quando, em Los Angeles.
* Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

[Adriana Lisboa]

Bastaria  


Bastaria
algum tempo sem vencimento
aberto como asas
onde não haja sorrisos úteis nem
papéis a endossar. Um vão
entre duas felicitações
contemporizações - por exemplo
(pensar em) margear
Buenos Aires: poetas
Bornéu: primatas
adentrar a ideia dessas coisas.
Bastaria um templo
o céu cobalto que me ignora
raízes varando paredes
menos do que residuais.
Bastaria subtrair: sem eventos
sem motivos
e como desde sempre soubemos,
bastaríamos nós.


Balão

O balão leva alguém
para uma volta ao mundo - é
o que você escolhe pensar, pés fincados
no cimento mole da manhã em que
todos os voos são imaginados
ou impossíveis, como o do balão
que brota do horizonte tal uma
pera invertida e cujas cores
mal se podem distinguir (mas você sabe
que as há, se as há sempre, se os balões são
animais do ar, da cor, do risco).
O balão sobre em seu perigo lento.
Daqui de baixo você sorri de sua própria
fantasia (é só um sujeito se divertindo
lá em cima numa manhã
de quarta-feira, só isso) e segue
em frente: uma vez pedestre,
sempre chão.

Promessa

O prato da casa
é a sobrevivência, então
não se preocupe. Não se preocupe.
Mesmo com todos os
estilhaços, a areia na garganta,
mesmo que eu tenha nos olhos
um cansaço de trincheiras,
mesmo assim, veja:
continuo de pé. Um joão-bobo,
um náufrago de pança inchada
subsistindo de sol a sol.

Adriana Lisboa. Parte da paisagem. São Paulo: Iluminuras, 2014.

sábado, 11 de novembro de 2017

[Susan Sontag]


Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e fomos. Se os livros desaparecerem, desaparecerá a história e também os seres humanos. Tenho certeza de que você está certo. Os livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e memórias. Eles também nos dão o modelo da autotranscendência. Alguns pensam que a leitura é apenas uma forma de escapismo: uma fuga do mundo “real” cotidiano para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Mas os livros são muito mais. São um modo de sermos plenamente humanos.


Susan Sontag, “Carta para Borges”, 1996.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Minotauro



Alguns livros (hoje em dia cada vez mais raros) nos conquistam desde a primeira página. "Minotauro" é, sem dúvida, um deles. Pela própria forma como a narrativa é construída, o leitor, principalmente o mais curioso, não consegue deixar de lado uma história assim tão intrigante. Logo nos damos conta de que nós é que estamos presos no labirinto criado por Tammuz. Por conta do suspense estabelecido ao longo do texto, que só desvendamos de fato no final, Minotauro é um daqueles livros destinados a viver na prateleira de livros favoritos dos leitores mais exigentes. O livro, que foi um grande sucesso mundo afora nos anos oitenta, finalmente chega aos leitores brasileiros pela editora Rádio Londres com tradução direta do Hebraico de Nancy Rozenchan.

O enredo conta a história de um homem, um agente secreto, que no dia do seu aniversário de quarenta e um anos está sozinho em um quarto de hotel, bem longe de casa. Sabemos que o relacionamento dele com a sua esposa e seus três filhos é muito frio e distante. É um homem introvertido, misterioso, que vive em solidão.
Quando o agente secreto entra em um ônibus de uma cidade que a princípio não sabemos muito bem qual é, apenas que é bem distante de sua cidade de origem, ele finalmente encontra o objeto do seu amor: mas ela tem dezessete anos e ele, quarenta e um. Impossível não pensar na Lolita, do Nabokov:
"A jovem da esquerda tinha cabelo cuja cor era uma espécie de cobre, cobre escuro, brilhando com um reflexo dourado. O cabelo era liso e preso na nuca com uma fita de veludo preto, atada num laço cruzado. A fita, assim como os cabelos, destacava-se pela limpeza fresca, o tipo de limpeza imaculada que é encontrada nas coisas que ainda não foram tocadas pela mão que manuseia" (p.13)

Obcecado por Téa, ele começa a segui-la silenciosamente e o "diálogo" entre eles passa a acontecer através de cartas anônimas que ele começa a enviar para ela. Téa não sabe quem escreve essas cartas, nem para onde poderia enviar uma resposta, então começa a escrever cartas para ele, guardando-as em uma caixa destinada a esse remetente anônimo, que um dia ela espera conhecer. Quem seria esse homem misterioso, que já sabe tanto sobre ela, e que lhe escreve cartas tão belas de amor? Apesar do discurso "amoroso" das cartas, é difícil não pensar que mulher receberia estranhas cartas anônimas por tanto tempo de um homem que claramente está obcecado por ela e não sentiria medo, e não contaria para ninguém. Mas Téa, logo nas primeiras páginas, é descrita pelo narrador como alguém fácil de manipular, que faria tudo o que ele quisesse: "capaz de devoção total, entusiasta" (p. 15). Téa, portanto, não tem voz nessa história, assim como as demais mulheres que aparecem ao longo do narrativa. Todas aceitam passivamente e com total subserviência o que os homens lhes ordenam. Isso é algo que sem dúvida merece ser pensado durante a leitura de Minotauro.

Há uma tensão que perdura por toda a narrativa, e paira no ar a sensação de que algo trágico vai acontecer. Podemos sentir isso na angústia de Téa, que acaba por se envolver cada vez mais com essas cartas, que, feito fios, passam a prendê-la pouco a pouco no mistério desse homem que ela nunca viu, do qual ela pouco ou nada sabe, mas que a imaginação lhe permite idealizar. As fantasias românticas de Téa casam-se perfeitamente com o delírio obsessivo do agente secreto que manipula seus sentimentos durante anos.
"Você jamais terá a oportunidade de me formular perguntas, mas a minha voz chegará a você por meio de cartas, e eu sei que as lerá" (p.15, carta do agente secreto para Téa)
Temos assim uma troca de cartas, mas em alguns momentos lemos em sequência algumas cartas escritas pelo agente secreto, o que nos deixa imaginando as possíveis respostas de Téa, e, em outros momentos, lemos em sequência algumas cartas de Téa, o que também nos faz imaginar quais seriam as respostas de nosso agente secreto. Mas, enovelados que estamos nos fios dessa narrativa tão bem construída por Tammuz, lembramos que as cartas de Téa até então não haviam sido enviadas para ele, estavam todas em uma caixa. O diálogo foi todo através da imaginação. Da nossa imaginação e da imaginação desses personagens. 

Depois passa a haver de fato uma troca de cartas, que tornam-se menos ou mais frequentes em certos períodos. Assim como Téa, que espera pelas cartas de seu interlocutor anônimo, nós também ficamos aflitos por saber mais sobre esse personagem misterioso, obsessivo e romântico. 

Mais dois personagens são fundamentais para essa narrativa que tem quatro vozes importantes: G.R. e Nikos.
G.R., um rapaz também apaixonado por Téa, que faz de tudo para conquistá-la, surge como um terceiro elemento. Passa a estudar muito e a tirar boas notas na faculdade só para impressioná-la. Cultivou por muito tempo uma paixão platônica por Téa, até conseguir dela se aproximar. Mas qual homem poderia competir com o homem idealizado que, após anos de correspondências anônimas, mora no coração fantasioso de Téa? Ou será que um relacionamento real conseguiria destituir esse homem misterioso do mito que ele se tornou?

A quarta voz é Nikos, que deixa o coração de Téa em dúvida sobre sua verdadeira identidade. As semelhanças entre ele e o que ela imagina ser o agente secreto são muitas e Téa já está exausta de conviver há anos com esse suspense. Será que ele é o agente secreto com quem ela se corresponde há anos?

Por fim, o emaranhado de fios se desembaraça, não sem antes passear pela vida desses personagens, desde a infância. Esse passeio pelas lembranças do passado de cada um acaba por elucidar muitas de suas ações no presente em que se passa parte da história. Principalmente quando o passado do agente secreto é desvendado, a questão política ajuda a contextualizar no tempo e no espaço parte importante do enredo.

Minotauro é um livro inquietante, que nos faz refletir sobre a obsessão e a necessidade humana de amar e ser amado. É um livro triste por falar de uma solidão irreparável, sem salvação. Das marcas que relações familiares destituídas de amor podem deixar em nós a tal ponto de sermos capazes de reproduzi-las. Nem mesmo o amor de Téa pode salvar o minotauro do destino que ele acredita ser seu. Do mito do Minotauro na mitologia grega fica a lição: não há como enganar os deuses.


***
Benjamin Tammuz nasceu na Rússia, em 1919, e emigrou para a Palestina com a família aos cinco anos de idade. Estudou Direito e Economia na Universidade de Tel Aviv e mais tarde frequentou a Sorbonne, em Paris, onde cursou História da Arte. Foi escultor, pintor, romancista, jornalista e crítico literário. Por muitos anos foi editor do suplemento literário do jornal Ha'aretz. Durante quatro anos foi adido cultural da Embaixada de Israel em Londres. Seus romances e contos foram traduzidos para vários idiomas e receberam diversos prêmios literários, consagrando Tammuz como um dos mais ilustres expoentes da literatura hebraica contemporânea. O romance Minotauro foi eleito o livro do ano na Inglaterra quando foi publicado em 1989, tendo recebido elogios de grandes escritores. Benjamin Tammuz faleceu em 1989 em Tel Aviv. 

TAMMUZ, Benjamin. Minotauro. Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2015. Tradução: Nancy Rozenchan.

*Recebi este livro como cortesia da editora Rádio Londres.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

[Susan Sontag]



Jonathan Cott - Uma vez me disseram que você costumava ler um livro por dia.

Susan Sontag - Eu leio em excesso e de maneira muito descuidada. Adoro ler do jeito que os outros gostam de ver televisão, e de certa forma eu adormeço assim. Se estou deprimida, abro um livro e me sinto melhor.

Jonathan Cott - Como escreveu Emily Dickinson: "Flores e livros, confortos da tristeza".

Susan Sontag - Exato. Ler é minha diversão, minha distração, meu consolo, meu pequeno suicídio. Quando não consigo suportar o mundo, me enrosco a um livro, e é como se uma nave espacial me afastasse de tudo.

Susan Sontag, Entrevista completa para a Rolling Stone.

domingo, 29 de outubro de 2017

[Manuel António Pina]

Amor como em casa                                                         


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.


Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.


Alguém atrás de ti

Como no sonho dum sonho, arde
na mão fechada de Deus o que passou.
É cada vez mais tarde
onde o que eu fui sou.

Que coisa morreu
na minha infância
e está lá a ser eu?
A lâmpada do quarto? A criança?

Em quem tudo isto
a si próprio se sente?
Também aquele que escreve
é escrito para sempre.

Manuel António Pina. Poesia Reunida. Lisboa: Assírio e Alvim, 2001.

* Manuel António Pina (18 de novembro de 1943 — 19 de outubro de 2012) foi um jornalista e escritor português, premiado em 2011 com o Prêmio Camões.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O Martelo

a porca

a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.



o urubu

corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)
deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular
eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

Ivánova, Adelaide. O martelo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições garupa, 2017.

Adelaide Ivánova nasceu em 1982 na cidade de Recife. Jornalista, poeta, tradutora e fotógrafa, seu trabalho percorre o mundo em publicações impressas e digitais como i-D (UK), Colors (Itália), Te Hufngton Post (EUA), Modo de Usar & Co. (Brasil), Suplemento Pernambuco (Brasil) entre outras. "O Martelo" é seu terceiro livro de poemas.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

O apocalipse dos trabalhadores



Neste romance, Valter Hugo Mãe nos presenteia com a história de duas empregadas domésticas em Portugal, Maria da Graça e Quitéria. Duas mulheres trabalhadoras unidas pela cumplicidade da amizade e de sua ocupação. Maria da Graça, casada com Augusto, um pescador, é quem sustenta a casa com seu trabalho como “mulher-a-dias”, como se diz em Portugal. Augusto passa a maior parte do ano no mar, e mesmo quando retorna não contribui muito com as despesas da casa. Maria da Graça trabalha na casa do senhor Ferreira, um homem rico e aposentado, que abusa sexualmente de Maria da Graça em sua condição de empregada doméstica, se apropriando do seu corpo como parte do serviço pelo qual paga. O sofrimento de Maria da Graça pode ser percebido pelos pesadelos que ela descreve ao longo da narrativa, da tristeza crescente que passa a demonstrar, mesmo depois da morte do senhor Ferreira, e consequente fim dos abusos. Uma amostra de que o sofrimento causado pela violência desses assédios pode durar muito mais tempo do que se imagina.

O peso das expectativas geralmente atribuídas às mulheres, como esse ideal de amor romântico que é reproduzido desde a infância com os contos de fadas em que todos são “felizes para sempre”, faz com que Maria da Graça comece a achar que está apaixonada pelo patrão. Essa imagem de uma mulher que é abusada sexualmente em seu ambiente de trabalho e assume um discurso totalmente naturalizante da violência, interpretando-a como amor revela o perigo desses discursos. Felizmente na história, a amiga, Quitéria, aparece como uma espécie de alter ego e diz a Maria da Graça o que nós temos vontade de dizer: Maria da Graça, "és muito nova para te deixares convencer que o amor é sermos violadas” (p.20). 

No romance, temos também a história de Andriy, um jovem que deixa seus pais na Ucrânia em crise, e migra para Portugal em busca de trabalho, como muitos fizeram na época da grande fome ucraniana. Andriy passa a se relacionar com Quitéria, ao mesmo tempo em que sente grande solidão por estar longe da família, com a qual se preocupa, e um tanto isolado, pois não fala português e em Portugal, concentrando-se unicamente no trabalho, passa a constatar quão violenta é a condição desumanizadora do trabalho, que desconsidera os sentimentos dos homens e passa a tratá-los como máquinas. Vemos com o relacionamento de Andriy e Quitéria também uma inversão dos papeis tradicionais de gênero, uma vez que é ele quem demonstra maior sensibilidade diante do relacionamento dos dois, mostrando como os homens também sofrem em uma sociedade patriarcal, que associa o masculino à virilidade, agressividade e também ausência de emoções.

O apocalipse dos trabalhadores é um romance que fala sobre a condição dos trabalhadores e trabalhadoras no mundo contemporâneo; é também um romance que fala sobre a bonita relação de amizade que surge nas circunstâncias mais inesperadas, assim como aborda a violência a que as mulheres estão constantemente submetidas, seja no ambiente doméstico, seja em seu local de trabalho. Acho que ele fala também sobre o problema dessa concepção idealizada de amor, o que somos levados a acreditar que é amor, e que, na verdade, é o que pode nos destruir, como acontece com uma das personagens. Levada a acreditar que a felicidade é “morrer de amor”, passa a considerar uma violência como amor, e põe fim à sua vida para alcançar esse ideal. E talvez seja isso o grande mérito do livro, fazer-nos refletir sobre aquilo que nesse mundo tão absurdo temos chamado de amor.

A nova edição pela Biblioteca Azul, atual editora de Valter Hugo Mãe no Brasil, conta com ilustrações exclusivas de Eduardo Berliner e prefácio de Ignácio de Loyola Brandão.

MÃE, Valter Hugo. O apocalipse dos trabalhadores. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

E o Prêmio Nobel vai para...


O escritor inglês Kazuo Ishiguro ganhou hoje o Prêmio Nobel de Literatura 2017 "por seus romances de grande força emocional que revelaram o abismo sob o nosso senso ilusório de conexão com o mundo", disse a Academia Sueca. Eu sempre lamento quando o prêmio não vai para uma escritora, mas hoje confesso que fiquei feliz com a premiação, pois Ishiguro escreveu um dos livros da minha vida (aquela listinha seleta de livros que me emocionaram muito e com os quais me identifiquei profundamente): Os vestígios do dia é um dos livros mais bonitos que eu já li. O filme, adaptado para o cinema em 1993, com Anthony Hopkins e Emma Thompson, também é incrível. (Clique para ver o filme). Também gostei bastante de Não me abandone jamais (Never let me go), que já virou filme.



Kazuo Ishiguro nasceu em 8 de novembro de 1954, em Nagasaki, no Japão. A família mudou-se para o Reino Unido quando ele tinha cinco anos. Ele só voltou para visitar seu país de origem quando adulto. No final dos anos 1970, formou-se em Inglês e Filosofia pela University of Kent, e depois estudou escrita criativa na University of East Anglia. Desde a publicação de seu primeiro romance, Uma pálida visão dos montes (A Pale View of the Hills) em 1982, é escritor em tempo integral. Ele ganhou o Booker Prize em 1989 por Os vestígios do dia. Os temas mais associados às suas obras são a memória, o tempo e a desilusão. Seus dois primeiros romances são ambientados em Nagasaki, logo após a Segunda Guerra Mundial. Além dos oito livros publicados, Ishiguro também escreveu roteiros para o cinema e televisão.

Obras de Kazuo Ishiguro:

(1982) Uma pálida visão dos montes (A Pale View of Hills)
(1986) Um artista do mundo flutuante (An Artist of the Floating World)
(1989) Os vestígios do dia (The Remains of the Day)
(1995) O Inconsolável (The Unconsoled)
(2000) Quando Éramos Órfãos (When We Were Orphans)
(2005) Não me abandone jamais (Never Let Me Go)
(2015) O Gigante Enterrado (The Buried giant)

(Informações traduzidas por mim e extraídas do site da Academia Sueca, aqui ).

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Escuro


A CARTA
(Ana Luísa Amaral)

Senhores:
hão de a dor e a ausência ter sabor,
um certo cheiro doce e demorado,
em forma de mil olhos

Pois vós olhastes essa minha ausência,
dissestes que dali criei palavras,
mas não por minha mão

Na vossa história, senhores,
eu fui só voz,
em vez de gente inteira

Inteira, nunca o fui,
dobrada ao meio pelo escuro das vestes,
pelas juras forçadas que cumpri,
pelo dever que me ditou meu pai

Porém, fui eu que as fiz, às letras dessas cartas,
eu, que as fui construindo devagar,
na escuridão da cela

O resto foi roubado por vós
e noutra língua,
e em mitos que vos eram
necessários

Não fui só voz:
fui eu, dona de mim,
porque as letras me foram, e o amor,
e o ódio vagaroso

Só para isso me valeu viver,
para compor, igual a sinfonia,
tudo o que considerei

Ele foi só palavras que em palavras forjei,
bigorna onde moldei espadas e lanças,
o lume necessário

Só não moldei
as grades da prisão onde vivi:
essas, moldastes vós
até incandescência

Mas eu, nas letras que compus,
eu inventei a ausência como mais ninguém.
Eu fui a mão da ausência
numa cela escura

E os atos dele foram-me as metáforas,
imagens a seguir-me, mais fortes
do que a vida.
Por isso me chamastes, senhores,
no vosso tempo, uma palavra nova e ágil:
literatura

E assim eu fui-vos voz,
e doce mito. E nada mais
vos fui

Quero dizer-vos hoje,
neste tempo tão escuro,
mas de um escuro diverso do que tive:
adeus

Deixai-me o escuro, o meu.
Porque ao lado da minha,
a vossa ausência, essa que em mim plantastes,
nada é.
Tomáreis vós saber o que é ausência

Ausência: eu: demorada nestas linhas.
Dizer com quanto escuro
a noite se desfaz
e se constrói -

AMARAL, Ana Luísa. Escuro. São Paulo: Iluminuras, 2015. p. 47-48.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Na esperança, o homem


Da cabeceira do rio, as águas viajantes
não desistem do percurso.
Sonham.

A seca explode no leito vazio
e a pele enrugada da terra seca e
sonha.

O barco espera.
O sábio contemplativo aguarda.
O homem, ao peso de qualquer lenho,
Não se curva.
Sonha.

Sonha e faz
com o suor de seu rosto,
com a água de seus olhos,
com a fluidez de sua alma,
cospe e cospe no solo
amolecendo a pedra bruta.

Faz e sonha.

E no outro dia, no amanhã de muitos
outros dias, a vida ressurge fértil,
úmida,
alimentada pelo seu hálito.

E que venham todas as secas,
o homem esperançoso
há de vencer.

Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017. p. 55-56.

domingo, 20 de agosto de 2017

O castelo de vidro



O castelo de vidro é um romance biográfico no qual a jornalista e escritora estadunidense Jeannette Walls narra suas memórias de infância e as memórias de sua família bem peculiar. Boêmios, errantes, sem vínculo a nenhum lugar e sem nenhum apego aos valores tradicionais, essa família atípica vive na verdade em condições insalubres, de muita pobreza e privações, fugindo de credores - mas tudo isso é mascarado e romantizado no discurso dos pais, que tentam convencer seus filhos e a si mesmos de que a vida que levam é por opção.

O pai de Jeannette era alcoólatra e não permanecia nos empregos por muito tempo. Quando bebia, sempre voltava para casa agressivo, principalmente com a esposa. Apesar de ser carinhoso com os filhos e ter um carinho especial pela filha Jeannette, que sempre acreditava em suas histórias mais mirabolantes, os problemas em família eram muitos: as crianças não frequentavam a escola, ficavam com frio e com fome porque ele gastava todo o dinheiro que recebia em bebidas e apostas, com roupas rasgadas e morando em casas em condições precárias ou mesmo dormindo ao relento enquanto a família inteira se mudava de cidade em cidade, carregando seus poucos pertences em um carro velho, que quase sempre os deixavam no meio do caminho.

Muito dessa negligência é narrada pela autora com certo romantismo. De certa forma, é de se imaginar que apesar de todos os problemas que ela descreve no livro, de tudo que os pais aprontaram com ela e os irmãos (e que a maioria das pessoas com bom senso considerariam negligência e irresponsabilidade) ela ainda sente por eles amor, talvez até mais compaixão. Há sempre uma passagem mais terna depois de um incidente bem problemático que faz com que o problema se suavize em uma leitura mais rápida. Ou talvez seja simplesmente o desejo da autora de não querer condenar os pais pelos seus erros, na tentativa de mostrar que também houve pontos positivos em sua criação.

Desde a infância que Jeannette ouvia do pai que ele construiria um castelo de vidro para a família: uma casa com telhado de vidro para que eles pudessem observar as estrelas e com tudo o que cada um deles sonhava em ter em uma casa, o que na época eles não tinham. Jeannette era a única que parecia ainda acreditar nessa promessa do pai, de que ele encontraria ouro ou ganharia muito dinheiro para construir o castelo de vidro. A irmã mais velha de Jeannette e a mãe já conseguiam perceber que isso era só mais uma das histórias do pai. Essa relação mais próxima entre Jeannette e o pai é narrada com sentimento pela autora, que ainda assim não deixa de registrar os momentos (muitos, na verdade) em que o pai a decepcionou. 

Foram muitas as questões que chamaram a minha atenção no livro. A primeira é como esse casal com cinco filhos conseguiu fugir das instituições responsáveis por proteger os menores de idade. Uma única tentativa de visita do oficial de justiça na casa dessa família é narrada pela autora e mesmo assim, depois disso ninguém mais aparece. O que nos faz pensar na fragilidade desse sistema de proteção que, mesmo com denúncias, provavelmente dos vizinhos, nada é feito pelas crianças.

A segunda questão são as inúmeras violências que as meninas e mulheres sofrem. Desde a mãe de Jeannette, que derruba a narrativa romântica do pai de como eles se casaram para revelar que ele não aceitava um não como resposta, às agressões verbais e físicas que a mãe sofria quando o pai voltava bêbado para casa. O impacto dessa violência na formação das crianças, que presenciavam tudo isso e “fingiam não ver” como uma forma de sobrevivência, é algo terrível de se imaginar. Nesse sentido o livro também mostra o impacto desses problemas na vida das crianças quando toda a família precisa voltar para a cidade natal do pai e morar na casa da avó paterna, também alcoólatra, e esse período é suficiente para que as crianças também compreendam o que o pai deles havia sofrido.

A própria Jeannette é atacada por um dos meninos do bairro que quer namorar com ela (ela nem tinha doze anos na época) e esse acontecimento é silenciado porque ela conseguia pressentir, desde aquele momento, que isso traria muitos problemas para ela, ou seja, as mulheres dessa família já crescem aprendendo que o silêncio é o caminho que a mulher deve tomar nessa sociedade. Pouco tempo depois, ela é assediada dentro de casa por um tio e quando relata o ocorrido para a mãe esta é a resposta (que me deixou bastante inconformada, para usar um eufemismo, tamanho foi o absurdo do argumento e a negligência da mãe):

“Está tudo certo – disse, e explicou que agressão sexual era um crime de percepção. – Se você não acha que foi agredida, não foi. Muitas mulheres fazem escândalo demais com essas coisas. Mas você é mais forte que isso – falou, e voltou às palavras cruzadas” (WALLS, p. 215).

Além disso, uma das colegas de escola de Jeannette, quando mais tarde eles retornam para a cidade natal do pai e voltam a frequentar a escola, tem uma significativa mudança de comportamento, que chama a atenção de Jeannette e que ela explica como sendo pela mudança do namorado da mãe para casa onde ela morava. Pouco tempo depois a menina diz estar grávida, não aparece mais na escola e quando Jeannette vai até a casa dela saber o que está acontecendo o namorado da mãe não permite que ela fale com a amiga. E essa violência, tão evidente para quem lê, é só mais uma das muitas violências descritas no livro que ficaram por isso mesmo.

O ponto alto do livro talvez seja mostrar a determinação dessas crianças em lutar pelo sonho de sair dali, de ter uma vida melhor e fazer tudo para conseguir isso. Certamente foi uma infância bastante prejudicada pela preocupação que tinham com a comida, com o frio, com as roupas, às vezes agindo com mais maturidade que os próprios pais. De tão surreal, por vezes queremos acreditar que essa história é ficção, mas infelizmente não é. Talvez por isso nós sentimos (ou a autora mesmo) o desejo de extrair dessa história algo positivo.

Vejo o livro como uma forma de a autora exorcizar esse passado e talvez ficar em paz com suas próprias lembranças. Sem dúvida é uma história que nos inquieta e faz pensar em quão complexas são as relações familiares - nunca perfeitas, é certo – mas em alguns casos bastante problemáticas. É importante ter em mente isso durante a leitura, e reconhecer e nomear essas violências que acabam por ser naturalizadas ao se transformarem em apenas mais uma história.


*Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Drummond

Carlos Drummond de Andrade. Eterno.
(31 de outubro de 1902 - 17 de agosto de 1987)

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Cozinha de afeto


Quem me conhece sabe o quanto gosto de histórias que misturam receitas e a paixão pela culinária. Mais que um livro de receitas, Cozinha de afeto, de Alexandra Gonsalez e Sônia Xavier, é um livro de histórias de mulheres que vieram para o Brasil em diferentes épocas e condições e aqui construíram parte de sua história de vida, sempre ligadas pelos ingredientes e temperos de sua terra natal. 

Na bagagem de qualquer imigrante, além de alguns objetos que carregam memórias afetivas, há também as lembranças dos aromas e sabores e as receitas, muitas vezes passadas de geração para geração, de sua culinária. 

Nesse livro, são doze mulheres imigrantes, vindas de Angola, Alemanha, Argentina, Colômbia, Etiópia, Espanha, Índia, Irã, Japão, Grécia, Itália e Ucrânia, que reconstituem uma pouco de sua história e da história de suas famílias ao narrar as lembranças associadas a uma refeição de família, e aos sabores dos ingredientes muitas vezes só encontrados em sua terra natal, que precisaram ser substituídos aqui no Brasil. O resultado são receitas e histórias cheias de paixão, que descrevem os sentimentos vividos nesse percurso: da viagem e do estranhamento ao chegarem aqui, à saudade de casa e os novos encontros realizados aqui no país. Como em uma boa comida, a prova de que é a mistura de temperos (e de culturas) que rende uma boa história.


domingo, 23 de julho de 2017

Elas por elas


Qualquer lista ou seleção sempre deixa de incluir algo, não tem jeito. No caso dessa antologia, organizada por Rosa Amanda Strausz, não é diferente. Basta uma rápida olhada nos nomes listados na capa para perceber que são todas autoras brancas e já consagradas no campo literário brasileiro. Não que por isso muitas delas não sejam excelentes, porque são. Mas eu particularmente acho que a graça das antologias é justamente esta: permitir que a gente conheça novas autoras ou autoras cujos trabalhos não sejam fáceis de encontrar (no caso do Elas por Elas, apenas o texto de Pagu se encaixa nessa categoria). O olhar crítico, no entanto, me faz questionar por que outros nomes indispensáveis de nossa literatura não fazem parte dessa seleção. Mas, como já mencionei, toda seleção é o olhar de uma pessoa e é quase impossível agradar a todos, não é mesmo?

Em tempos de Leia Mulheres, no entanto, a antologia Elas por Elas é uma ótima opção para quem quer ampliar suas leituras de textos escritos por mulheres. O livro traz textos (contos, crônicas e poemas) de importantes escritoras brasileiras que, mesmo que você já tenha lido algum texto delas na escola, ainda há muito mais por ler. Para quem já tem alguma leitura dessas autoras, como foi meu caso, o livro pode perder um pouco o encanto, mas, mesmo assim, ainda me encantei com o conto de Maria Valéria Rezende e o de Nélida Piñon, de quem ainda não havia lido nada e fiquei mesmo com vontade de ler tudo. Destaco também o conto de Lígia Fagundes Telles, de Clarice Lispector e Cintia Moscovich que estão entre os cinco melhores pra mim.

Se você conhece alguma outra antologia bacana, escreve pra mim nos comentários, vou adorar receber sua indicação =]

                                                                                        

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Contemporâneo



Que te devolvam a alma
Homem do nosso tempo.
Pede isso a Deus
Ou às coisas que acreditas
À terra, às águas, à noite
Desmedida,
Uiva se quiseres,
Ao teu próprio ventre
Se é ele quem comanda
A tua vida, não importa,
Pede à mulher
Àquela que foi noiva
À que se fez amiga,
Abre a tua boca, ulula
Pede à chuva
Ruge
Como se tivesses no peito
Uma enorme ferida
Escancara a tua boca
Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.


Hilda Hilst. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

sábado, 29 de abril de 2017

O fio da palavra



"Minha memória tem espaço para infinitas paisagens. Tudo que desconheço minha memória inventa. 
Mas hoje acordei sem coceira nos dedos. Despertei vazio de pensamentos. Um grande nada acordou comigo. Não quero jardim, deserto ou mar. Há dias em que a preguiça de pensar me persegue. A memória exige trégua para descansar. O mundo inteiro parece vivido.
A vida se nega a novas notícias. O coração parece bater desafinado - sem corda - e pulsa quase parando sem força para fortes fôlegos. Ter memória é embriagar-se de lucidez."

Bartolomeu Campos de Queirós, O fio da palavra

domingo, 23 de abril de 2017

Dia Mundial do Livro


Feliz Dia Mundial do Livro! =]

sexta-feira, 7 de abril de 2017

A Desumanização


“Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos 
do que representamos entre todos.” 

Poético, intenso, imensamente humano. Essas são as palavras que quase sempre uso para falar dos livros de Valter Hugo Mãe. A nova edição de A Desumanização acaba de ler lançada pela Biblioteca Azul e foi um convite a reler esse livro quatro anos depois da minha primeira leitura.

A linguagem poética de Valter Hugo Mãe parece emergir dessa Islândia onde a natureza é tão forte, onde a solidão é tão grande. Sim, este livro fala de solidão, mas não só sobre isso. Fala de amor, de perdas, de luto, de relações familiares, e muitas outras coisas. E contando a história de uma menina que perde a sua irmã gêmea quando criança, nessa Islândia que passamos a imaginar pelas descrições como um lugar talvez difícil de viver (uma representação do mundo de hoje?), aonde as pessoas vão perdendo a sensibilidade para conseguir continuar vivendo diante de ações e sentimentos cada vez mais desumanos. A decadência da família de Halla é contada, e todo o sofrimento que a perda de sua irmã gêmea vai acarretar na vida das personagens é o fio condutor da história. Temos uma criança perdendo sua inocência e lutando para manter sua individualidade, e é bem chocante a figura materna nessa história, que não se conforma com a dor de perder uma filha, e que acaba por se tornar uma pessoa muito cruel pelo sofrimento. A filha que sobrevive será sempre a lembrança da que morreu. A solidão na dor e na ausência, por parte da mãe, e a solidão imensa da filha que fica "órfã" de mãe em vida e que perde a sua metade, sua irmã. 

“Um homem não é independente a menos que tenha a coragem de estar sozinho”. Essa frase de Halldór Laxness é a epígrafe do livro e a inspiração para o nome da personagem principal, Halldora, uma menina de 11 anos. É muito interessante ver a capacidade do autor de dar voz a essa personagem, narrando os sentimentos dessa menina, que ao longo do livro vai se tornando mulher, enfrentando todas as mudanças e descobertas que uma menina entrando na adolescência costuma vivenciar.

Em A Desumanização, a figura paterna ganha força na história como ponto de equilíbrio diante da crueldade da figura materna. É o pai de Halla que traz a poesia e a literatura para a vida da filha e, com isso, ambos ganham uma dose extra de força para sobreviver aos desencantos:

"Os poemas, dizia o meu pai, podem ser completos como muito do tempo e do espaço. Podem ser verdadeiramente lugares dentro dos quais passamos a viver".

"O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia".

Continuo achando que Valter Hugo Mãe é um desses escritores contemporâneos que devem ser lidos, porque em todos os seus livros terminamos a leitura refletindo sobre algo relevante. É sempre difícil terminar de ler um livro dele e dizer alguma coisa imediatamente a respeito, pelo menos é assim que eu me sinto. É como se precisássemos de silêncio para que toda essa realidade dolorosa dos temas que ele aborda pudesse ser absorvida. E se essa não é a literatura que verdadeiramente transforma, que nos coloca no lugar do outro, então eu não sei mais o que é. 

Creio que foi em O Filho de Mil Homens que o autor nos deu uma pequena licença de sonhar, pois nos outros livros, e em A Desumanização não é diferente, por mais doloroso que isso nos seja, (por mais doloroso que seja para o autor também, como ele mesmo afirmou em entrevistas) a vida não perdoa as personagens. E nem todo leitor está preparado para esse tipo de leitura. Espero que você, leitora / leitora, aceite o desafio.

A Desumanização é um desses livros que podem ser lidos e relidos a vida inteira, pelo belíssimo trabalho com a linguagem que o autor desenvolve em suas páginas e, principalmente, pelo retrato da vida e das relações humanas que o olhar atento e sensível de Valter Hugo Mãe sempre consegue registrar.

“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.” 

MÃE, Valter Hugo. A Desumanização. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017. 

domingo, 12 de março de 2017

As mãos de meu pai

Imagem: Gayle George
As mãos de meu pai 
(Mário Quintana)


As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
— como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da
nobre cólera dos justos...
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa
beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos
braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los
contra o vento?
Ah! como os fizeste arder, fulgir, com o milagre
das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos
nodosas...
essa chama de vida — que transcende a própria
vida
... e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Descascando cebolas

Lilly Martin Spencer (1822 –1902) Peeling Onions



Descascando cebolas (Adrienne Rich)

Só para ter um pesar
equivalente a todas essas lágrimas!

Nem um soluço em meu peito.
De coração impávido como Peer Gynt
eu corto tudo, sem heróis,
uma mera cozinheira.

Chorar já foi trabalho, uma vez
quando tive bom motivo.
Caminhando, senti meus olhos como feridas
abertas em minha cabeça.
Por isso os atendentes dos correios, pensei, deviam me encarar.
Um olhar de cachorro, de um gato, fizeram-me sentir dor -
ainda assim tudo permaneceu
preso em meus pulmões feito neblina escura.

Essas velhas lágrimas na tigela de cortar cebolas.

[Traduzido do inglês por Paula D.]


Peeling Onions (Adrienne Rich)

Only to have a grief
equal to all these tears!

There's not a sob in my chest.
Dry-hearted as Peer Gynt
I pare away, no hero,
merely a cook.

Crying was labor, once
when I'd good cause.
Walking, I felt my eyes like wounds
raw in my head,
so postal-clerks, I thought, must stare.
A dog's look, a cat's, burnt to my brain -
yet all that stayed
stuffed in my lungs like smog.

these old tears in the chopping-bowl.

[1961]

RICH, Adrienne. The fact of a doorframe, 1984.

sábado, 4 de março de 2017

Meu poema sem palavras

Starry Night Over the Rhone - Vincent Van Gogh

[por Adrienne Rich]

A noite fala,
você diz.
Meu poema sem palavras.
Meu voo rumo ao desconhecido.

O corpo é leve quando
tomado pelo que é.
Formado por muros e
janelas.
Pronto para entrar em chamas.
Com pequenas bandeiras
tremulando ao centro.

Toco em você com a ajuda
do vazio.
Uma ode à sobrevivência.
Um dicionário de prados selvagens.
Faremos qualquer coisa
por uma cura.

[Traduzido do Inglês por Paula D.]


Night is speaking
you say.
My poem without words.
My flight into wild country.

The body is light when
taken for what it is.
Formed of walls and
windows.
Ready to burn.
With little flags
fluttering in the center.

I touch you with the help
of the void.
An ode to survival.
A dictionary of wild grasses.
We'll do anything
for a cure.

(2004) Adrienne Rich. Telephone ringing in the labyrinth: poemas 2004 - 2006. 
London and New York: W.W. Norton & Company, 2007. p. 33

sexta-feira, 3 de março de 2017

Maré baixa



Maré baixa
[M. Vasalis]

Recuo e espero.
Tempo assim não será perdido.
Cada minuto se transforma em futuro.
Sou um oceano de espera,
envolto em água pelo instante.
Na maré baixa que sinto,
que puxa para si os minutos e,
em suas profundezas, prepara
a maré alta que vem.
Não há tempo. Ou será que
nada há além do tempo?

[Traduzi do inglês a partir da tradução do holandês por Juliana Brina]

quinta-feira, 2 de março de 2017

Outros jeitos de usar a boca



quando minha mãe estava grávida
do segundo filho eu tinha quatro anos
apontei para sua barriga inchada sem saber como
minha mãe tinha ficado tão grande em tão pouco tempo
meu pai me ergueu com braços de tronco de árvore e
disse que nesta terra a coisa mais próxima de deus
é o corpo de uma mulher é de onde a vida vem
e ouvir um homem adulto dizer algo
tão poderoso com tão pouca idade
fez com que eu visse o universo inteiro
repousando aos pés de minha mãe

[Rupi Kaur. in: Outros jeitos de usar a boca. trad. Ana Guadalupe. São Paulo: Planeta, 2017.]


Rupi Kaur é uma escritora e artista nascida na Índia que vive em Toronto, Canadá. Outros jeitos de usar a boca é um livro de poemas sobre a sobrevivência, o amor, o sexo, o abuso, a perda, o trauma, a cura e feminilidade. Publicado inicialmente de forma independente, o livro já vendeu mais de 1 milhão de exemplares impressos e ficou em 1º lugar na lista de mais vendidos do The New York Times.