segunda-feira, 29 de março de 2010

Despedidas

"O mundo tinha aquele cheiro da terra depois de chover e também o terrível cheiro das despedidas. Não gosto de despedidas porque elas têm esse cheiro de amizades que se transformam em recordações molhadas com bué de lágrimas. Não gosto de despedidas porque elas chegam dentro de mim como se fossem fantasmas mujimbeiros que dizem segredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido de criança.

Desci. Sentei-me perto, muito perto da Avó Agnette.
Ficámos a olhar o verde do jardim, as gotas a evaporarem, as lesmas a prepararem os corpos para novas caminhadas. O recomeçar das coisas.

- Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó.
- Vão para casa, filho.
- Tantas vezes de um lado para o outro?
- Uma casa está em muitos lugares - ela respirou devagar, me abraçou. - É uma coisa que se encontra."

Ondjaki. Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua geral, 2007. pág. 146

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É um livro que recomendo para leitores de todas as idades. Porque vale a pena relembrar e reviver essa época de olhos miúdos que brilhavam de esperança, mesmo que seja por alguns instantes.

"Antigamente as pessoas eram pessoas de chegar. Não sabíamos fazer despedidas". [pág. 137]

sexta-feira, 12 de março de 2010

Para aquecer corações




Ontem, passeando por uma das livrarias da cidade, vi o livro Escola dos sabores. Compulsiva por livros que sou, comprei e o livro superou minhas expectativas. Achei a história tão delicada e doce que li ontem à noite de uma vez só.

É no curso de culinária, que acontece na segunda-feira à noite de cada mês no restaurante da chef Lílian, que oito pessoas se encontrarão para aprender a cozinhar. Cada uma delas com um motivo diferente para estar lá, cada uma com sua história, com suas dores.

À medida que as aulas se passam, vamos conhecendo cada uma das personagens e cada um deles encontrará nas refeições, no prepraro cuidadoso dos alimentos, aquilo que seu coração precisa.

Um livro que fala dessa arte que requer tanta sensibilidade quanto escrever que é a culinária e que, feito mágica, consegue aquecer o coração das pessoas. Uma história que fala de amizades, de superação, de encontros e reencontros, de se descobrir outra vez depois de muito tempo. Uma história de pessoas reais, que nos presenteia com o universo encantado de uma cozinha, com seus aromas que trazem lembranças, com suas texturas que lembram sensações, com sabores que nos enchem de vida.

Livro para quem acredita no poder que os alimentos preparados com carinho têm para aproximar pessoas, curar dores da alma e aquecer corações.

Recomendo principalmente para quem gosta de fazer mágica na cozinha e aquecer corações.

Erica Bauermeister. Escola dos sabores. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. Trad. Fernanda Abreu.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Eu sou.

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Licença Poética (Adélia Prado)
Poema extraído do livro "Bagagem", 1976