sábado, 20 de junho de 2015

A amiga genial

A amiga genial é o primeiro volume da tetralogia criada por Elena Ferrante, narra a infância e a adolescência de duas personagens, as protagonistas da história: Elena e Lila. A partir do prólogo, tomamos consciência do mote do romance: Lila desapareceu, aos sessenta e seis anos, sem deixar vestígios; Elena, na tentativa de não deixar que ela desapareça por completo, decide escrever a sua história, que é a história de ambas e da amizade que se estabeleceu entre as duas desde a infância. A escrita é, portanto, uma forma de eternizar o que a vida não foi capaz de manter, uma forma de garantir a permanência das pessoas e das lembranças construídas a partir de suas vivências.

Mas a infância dessas personagens nada tem de comum. Lila é uma menina levada e destemida, por vezes cruel, em quem Elena se espelha. A relação entre as duas é uma mistura de competição, inveja e admiração. “Nosso mundo era assim, cheio de palavras que matam” (p. 25) é o que nos conta Elena. E a força das palavras de Lila era o que enfeitiçava Elena. A violência está presente na infância das duas como algo inerente à vida ou ao próprio ambiente em que vivem. São meninas pobres, em um bairro em que, para sobreviver, é preciso aprender a reagir.

 “Não tenho saudade de nossa infância cheia de violência” (p.25).

Apesar de franzina, Lila se destaca das demais pela inteligência, sendo a primeira da turma quase sempre, uma autodidata que lia escondido de todos, e por ser uma pessoa sempre em busca de um desafio. Algo que fica evidente na trama é como a escola por vezes também é um ambiente hostil e propício a humilhações quando a competição é estimulada pelos professores e diretores. Quando as meninas se destacam mais que os meninos na escola, são vítimas de mais violência para impedir qualquer desestruturação da ordem patriarcal que claramente governa a sociedade italiana descrita no romance. Muitas delas são impedidas de continuar os estudos muito mais por serem mulheres do que pela condição social da família, como podemos observar no diálogo entre Rino, irmão de Lila, e seu pai:

“Se você me pagar, eu me encarrego dos estudos dela”, dizia Rino.
“Estudar: Pra quê? Por acaso eu estudei?”
“Não”
“Então por que sua irmã, que é mulher, precisa estudar?”

A escrita honesta de Ferrante, ao mesmo tempo em que nos choca pela violência que se apresenta assim sem nenhum comedimento, também nos encanta à medida que a história se desenvolve e essas personagens incríveis e complexas vão se apresentando. Quando nos damos conta estamos absolutamente envolvidos nessa narrativa que mostra um pouco do cenário italiano pós-guerra, onde as mulheres sofrem bastante pela submissão que a sociedade lhes impõem, silenciando suas vontades para assumirem o papel de esposas e mães, mas onde também há meninas como Lila e Elena, que sonham com uma vida de glamour, em que possam escrever, estudar, se apaixonar de verdade.

A trajetória dessas duas amigas desde a infância até a adolescência é contada através dos olhos de Elena, a amiga genial, a única que consegue continuar estudando. As duas tem uma relação de encantamento com os livros, mas Lila parece silenciar essa relação com o tempo para atingir outros objetivos. A eterna admiração que Elena sente por Lila, que mesmo sem estudar continua sendo brilhante, é um sentimento complexo e talvez o que mais encante na escrita de Ferrante: ela consegue retratar de forma honesta personagens humanas, verdadeiras, com todas as suas contradições. Mais importante ainda é que é a história de uma amizade entre mulheres, destacando todas as transformações que enfrentam em suas vidas, todos os obstáculos que tem que enfrentar (a violência inclusive), a partir da perspectiva feminina.

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que, indo contra a maré atual entre os escritores, quer permanecer fora dos holofotes: nada se sabe sobre sua vida pessoal, ela se recusa a divulgar fotografias e diz acreditar que os livros, uma vez escritos, não precisam de seus autores. Se eles têm algo a dizer, mais cedo ou mais tarde encontrarão os leitores. 

Enquanto leitora, só tenho a dizer que estou feliz que este livro tenha me encontrado e que a obra dessa escritora finalmente comece a chegar ao público brasileiro – que certamente vai ficar como estou agora: ansiosa pelos volumes seguintes dessa série Napolitana que promete muitas emoções.

FERRANTE, Elena. A amiga genial. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015. 336 páginas. Tradução: Maurício Santana Dias.

Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Hanói



Romance sobre deslocamentos, Hanói narra a história de David, um rapaz de 32 anos apaixonado por música, que trabalha em uma loja de materiais de construção em Chicago, Estados Unidos. David acaba de ser diagnosticado com um câncer agressivo, em estado avançado, para o qual não há mais tratamento. Ele só tem mais três ou quatro meses de vida e, abalado com a notícia da morte próxima, começa a repensar algumas questões de sua vida. Sozinho, sem parentes próximos, sem namorada, David decide se desfazer de tudo, assim como na lenda dos elefantes que se afastam de tudo para morrerem sozinhos. Ele pede demissão do trabalho e começa a doar seus pertences antes de escolher um lugar para onde viajará sozinho, o seu último destino.
Quando te dizem que é o último gole, David pensou, você para, aguça os sentidos e sente o gosto da bebida pela primeira vez (LISBOA, 2013, p. 13)
David é um exemplo dos deslocamentos contemporâneos, que parecem ser o tema central do romance de Adriana Lisboa. Filho de pai brasileiro que imigrou para os Estados Unidos em busca de melhores condições de vida, e de uma mãe mexicana, David cresceu nos Estados Unidos em contato com três culturas e idiomas diferentes. Apesar disso, a língua que aprendeu a falar tão bem, o inglês, é a língua que o pai nunca conseguiu aprender e que a sua mãe falava com bastante sotaque, ou seja, uma barreira de comunicação com o filho e com o novo lugar que habitam, onde sempre serão estrangeiros, um lugar ao qual não pertencem. Sem família, David é esse homem desenraizado, que reconhece na música a possibilidade universal de comunicação, independente das fronteiras linguísticas ou geográficas. É por meio da música que David se expressa e se comunica com o mundo, mas essa comunicação não se dá com sua namorada, Lisa, que despreza sua condição de músico amador, sua falta de ambição diante da vida. Quando Lisa joga o trompete de David pela janela, evidencia-se que essa comunicação entre eles não se estabelece. 

Quando conhece Alex, uma jovem de vinte e dois anos que trabalha no mercado vietnamita do bairro, David encontra a possibilidade de ter ao seu lado algumas horas de alegria enquanto a doença progressivamente se agrava. Sim, Hanói também é uma história de amor. Alex (nome oriental para um rosto cinquenta por cento) também é resultado de deslocamentos: sua avó, Linh, engravidou de um soldado estadunidense, um soldado inimigo, durante a Guerra do Vietnã. Por conta disso, tanto ela quanto a sua filha sofreram muito preconceito por “trair” seu próprio povo. Do soldado, elas nunca mais tiveram notícias. Anos depois, Linh parte para os Estados Unidos com a filha de dezessete anos, Huong, em busca de trabalho e um recomeço. A amizade com Trung, um vietnamita que também migrou para os Estados Unidos, onde abriu um mercado de produtos vietnamitas, permitiu que eles formassem uma comunidade, pois compartilhavam a mesma língua e cultura, assim como a experiência da Guerra do Vietnã, que foi completamente distinta da experiência que os estadunidenses tiveram dessa mesma guerra, considerada a Guerra Americana. A língua, ao mesmo tempo em que os unia, também os segregava:
Trung só falava com Alex em vietnamita na presença da mãe e da avó dela. Uma espécie de decência. Com Alex, o que era mais confortável para Alex. Mas, quando as gerações mais velhas estavam presentes, prioridade às gerações mais velhas (LISBOA, 2013, p. 36)
Deslocados de seu país de origem, de sua cultura e de seus antepassados, essas personagens compartilham a sensação de não pertencimento:
Quanto a Huong e Lihn, que conheciam bem essa história (a partir da fase náutica), suas pequenas almas também não pareciam estar ali, presentes, quando seus pés pisavam as calçadas das novas cidades pelas quais passavam. Mesmo quando aprendiam palavras do novo idioma e decifravam os costumes esquisitos de seu novo país.
Suas almas não estavam grudadas no corpo, Alex pensava. Pairavam em algum outro lugar, como se fossem pipas que elas empinavam e que flutuavam lá no alto, onde havia mais ar puro e menos todas as outras coisas (LISBOA, 2013, pp. 46-47)
Ao representar mulheres imigrantes, com vivências sofridas em meio à violência da guerra, a autora foge dos estereótipos comuns que representam o imigrante apenas como o homem em busca de melhores condições de vida. A perspectiva apresentada no romance de Lisboa também é feminina. Além disso, é possível observar a presença do trabalho dessas mulheres imigrantes nos Estados Unidos, e todo o preconceito que sofriam, além da invisibilidade que as cercavam, excluídas por não partilharem o conhecimento do novo idioma e também por sua posição social.

Alex, da terceira geração dessa família, cinquenta por cento vietnamita, cinquenta por cento estadunidense, afasta-se de seus pais, assim como ocorre com David, principalmente por conta do idioma e do fato de não compartilhar com a mãe e a avó as lembranças de uma época e de um lugar no passado para o qual não é possível regressar.

Além de falar dos deslocamentos tão comuns no mundo contemporâneo, Hanói nos faz repensar essas fronteiras identitárias, a barreira linguística e o sentimento de pertencimento (ou não pertencimento) que é igualmente comum ao mundo moderno. O mais interessante do romance, contudo, é a forma que a autora apresenta personagens “sem raízes”, com histórias complexas, para falar de uma essência que os aproxima, de uma solidão que os aflige, independente do idioma ou de sua localização geográfica; algo que os torna mais humanos, aproximando-os do leitor: a consciência da proximidade da morte, da finitude da vida. Um livro sensível, delicado, aparentemente simples, mas que trata de sentimentos tão profundos que nós também somos transportados por esses lugares, mas não sem regressar dessa leitura de coração partido.

Para ler o primeiro capítulo de Hanói, clique aqui.

LISBOA,Adriana. Hanói. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Después del invierno



O mais recente romance da escritora mexicana Guadalupe Nettel, Después del invierno (Depois do inverno - ainda sem tradução em português) narra a história de Claudio, um cubano que vive em Nova York e trabalha em uma editora, e Cecilia, uma mexicana que vive em Paris e é estudante de pós-graduação. Intercalando as vozes masculina e feminina dos dois protagonistas, que contam suas lembranças de infância, seus medos, suas caraterísticas mais pitorescas, Nettel consegue mais uma vez envolver o leitor nessa história que fala de relações amorosas, às vezes de forma irônica e com um humor refinado, e,  em outros momentos, com uma sensibilidade delicada e bastante comovente.

Assim como no romance O corpo em que nasci (Publicado no Brasil pela editora Rocco e único romance de Guadalupe Nettel traduzido para o português até o momento), Nettel mais uma vez nos apresenta personagens que ocupam as margens, que causam estranhamento e fogem do comum. 

Claudio é um homem frio, metódico, que preza mais que tudo o silêncio e o isolamento; um homem egoísta que só pensa em seus sentimentos. Vive em um apartamento pequeno em Nova York, que tem uma única janela, mas sem nenhuma vista pois a única janela fica em frente a um muro. Nesse ambiente asséptico, pois é bem obcecado por limpeza, ele se sente protegido não apenas do caos da cidade grande que o cerca, mas também de se socializar com o mundo, na tentativa de não sofrer. Sem se apegar a ninguém, acaba por se relacionar com Ruth, uma cinquentona divorciada e muito rica que age com total submissão aos desejos mais estranhos de Claudio. Sem falar muito e, com isso, sem perturbar o silêncio que ele tanto preza, Ruth acaba se tornando o par ideal para o jeito esquisito de Claudio: não reclama, não questiona, aceita o distanciamento de Claudio e o recebe bem sempre que ele decide voltar. Nem mesmo o próprio Claudio entende inicialmente como é possível existir uma mulher assim, tão submissa. Mas logo ele descobre o motivo do comportamento de Ruth e tudo começa a mudar.

Enquanto isso, em Paris, Cecília se sente uma estrangeira na cidade, sempre buscando o isolamento quando não está em aulas. Depois dos primeiros meses morando em um quarto na casa de uma amiga, decide alugar um pequeno apartamento e ter mais independência. O local escolhido é um prédio antigo com vista para um dos cemitérios da cidade. Desde pequena, Cecília é obcecada por tumbas, encantamento que começou quando sua mãe a abandonou ainda pequena para fugir com um amante. Na adolescência começou a passear com seus amigos góticos pelos cemitérios de Oaxaca, pois era um lugar que lhe dava conforto e, de alguma forma, resignificava a dor de ter sido abandonada pela mãe aos cuidados do pai e da avó. Muito calada e tímida, sempre com ar sonhador, estudou Letras e depois mudou-se para Paris para cursar a pós-graduação. O que Claudio e Cecília tinham em comum, desde a infância, era a paixão pelos livros que, tanto em Cuba quanto em Oaxaca, eram difíceis de se ter em casa, por isso o grande amor dos dois pelas bibliotecas, pois para ambos a leitura foi uma grande companheira em boa parte de sua infância e adolescência. Nesse sentido, o livro traz muitas referências a outros livros e autores, e também à música, uma das paixões de Claudio, que buscava encontrar alguém que pudesse se entregar à música em silêncio como ele fazia.

A solidão de Cecília é tão grande que ela passa a observar os ruídos e os movimentos das pessoas do seu prédio, reconhecendo-os pelos sons e horários de suas rotinas. Sua vida em Paris, durante as férias e em pleno rigor do inverno parece completamente sem sentido. Até que percebe que no apartamento vizinho ao seu, Tom, o vizinho, também tem uma vida tão solitária quanto a sua e está sofrendo. A amizade entre os dois se dá principalmente quando descobre que Tom também é obcecado por cemitérios, ainda que o motivo de sua obsessão seja o fato de estar doente. É compartilhando os livros lidos e as músicas que gostam, sem falar de passado nem de futuro, que começa o relacionamento entre os dois, o encontro de duas almas que se compreendem e se completam, mas que desde o início está fadado ao fim.

Entre encontros e desencontros, esses personagens desenraizados passeiam pelo mundo e por diversas cidades, e nos fazem refletir sobre o amor, a morte, o abandono, o suicídio, a violência, a solidão, a amizade - enfim, sobre a condição humana, e o que há de feio, estranho e bonito em cada um. Desses livros que não conseguimos largar até chegar ao fim. 

NETTEL, Guadalupe. Después del invierno. Argentina: Editorial Anagrama, 2015.

Para ler o primeiro capítulo (em espanhol), clique aqui.