segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)


Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:

O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Thiago de Mello

Santiago do Chile, abril de 1964

sábado, 5 de novembro de 2016

Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero

Um documentário importante e que vale a pena ver (50 minutos de duração, então reserve um tempinho aí). Uma produção da ONU Mulheres.

"#ElesPorElas é um movimento para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, cujo objetivo é engajar homens e meninos para novas relações de gênero sem atitudes e comportamentos machistas.
No âmbito do movimento #ElesPorElas (HeForShe), o documentário "Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero" procurará aproximar os homens desse tema tão importante. O objetivo é mostrar que a igualdade de gênero é uma questão que afeta a todos e todas e que, portanto, é benéfica a homens e mulheres. Nele investigamos como se formam, se sustentam e de que modo podemos desconstruir os estereótipos de gênero nocivos, que perpetuam o nosso cenário atual. O documentário é resultado de uma pesquisa qualitativa que rodou o Brasil e será complementado pela pesquisa quantitativa online ainda em curso.
A desigualdade de gênero é uma das violações mais persistentes de direitos humanos do nosso tempo. Ainda que estejamos caminhando para uma realidade mais igualitária entre homens e mulheres, ainda há muito a se construir. " (Texto de apresentação extraído do site da ONU Mulheres)




sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Exames de empatia


"Empatia não é apenas escutar, é fazer as perguntas cujas respostas precisam ser escutadas. Empatia requer investigação tanto quanto imaginação, Empatia significa reconhecer um horizonte de contexto que se estende perpetuamente além do que você pode ver"

"Empatia significa dar-se conta de que não existe trauma com bordas discretas. O trauma sangra. Para fora das feridas e através dos limites. A tristeza se torna uma convulsão. Empatia requer outro tipo de porosidade na resposta."

"Empatia vem do grego empatheia - em (para dentro) e páthos (sentimento) - uma penetração, uma espécie de viagem. Sugere que se entre na dor de outra pessoa, assim como se entraria num outro país, através da imigração e da alfândega, cruzando a fronteira por meio de perguntas: O que cresce na terra em que você vive? Quais são as leis? Que animais pastam lá?"

***

Nos diversos ensaios que compõem o livro Exames de empatia, a estadunidense Leslie Jamison discorre sobre diferentes situações, algumas relacionadas à sua própria vida, outras sobre histórias e relatos que coletou de outras pessoas, mas sempre incluindo a sua perspectiva em cada um deles. Os exames de empatia, primeiro ensaio e que também dá título ao livro, revela a própria experiência da escritora quando trabalhou como ator-médico, representando algumas doenças para avaliar os estudantes de medicina quanto à sua capacidade de expressar empatia pela dor dos pacientes. A partir dessa experiência, Jamison reflete sobre esse tema tão fundamental nos dias de hoje, que é a nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e imaginar sua dor. 

Susan Sontag, em Diante da dor dos outros, livro apaixonante para quem se interessa por fotografia - e também por literatura -  já levantava questionamentos até mais elaborados e que certamente serviram de inspiração para Jamison em Exames de Empatia: como falar e representar a dor do outro sem banalizar seu sofrimento? De que forma a arte e a fotografia tem feito isso? Que direito temos de representar essa dor? São perguntas que ressurgiram durante a leitura dos ensaios de Jamison, principalmente no primeiro ensaio sobre sua experiência como ator-médico e as implicações dessa representação da dor e do sentimento do outro.

O tema da dor, tanto física quanto emocional, reaparece em diferentes cenários: quando Jamison relata sua própria experiência como ator médico,  e traça um paralelo com outra vivência pessoal: ao passar por um aborto, e de como se sentiu diante da frieza da médica que, naquele momento, banalizou o que ela eventualmente sentia, sem demonstrar empatia.

A temática ressurge no ensaio A isca do diabo, que relata a visita de Jamison a uma conferência de pacientes com a doença de Morgellons, uma doença estranha e que muitos, inclusive médicos, desacreditaram por muito tempo, mas que atinge milhares de pessoas que sentem estranhas fibras emergindo de dentro da pele, ainda que nenhum exame clínico comprove essa sensação. Diante do sofrimento e da angústia vividas por essas pessoas, não só pelo que sentem e que causa imenso desconforto, mas pelo desamparo de não ser levado a sério em seu sofrimento, Jamison observa que se colocar no lugar do outro não é passar a sentir a sua dor, como a própria autora passou a imaginar durante a conferência, mas é estar verdadeiramente disposto a ouvir com empatia, o que aflige o outro. Fazer com que, de alguma forma, ele ou ela se sinta acolhido, confortado em seu sofrimento.

Para Roman Krznaric, em O poder radical da empatia, livro que também aborda esse tema e no qual ele defende a ideia de que empatia não é apenas um ideal utópico, mas uma forma de transformar nossas vidas e promover mudanças sociais, a empatia é definida como "a arte de se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar as próprias ações". Para Krznaric, a literatura, a arte, o cinema têm um importante papel nesse sentido, como instrumento para se desenvolver a capacidade humana de sentir empatia. Assim como Leslie Jamison nos faz refletir ao longo dos seus ensaios, a partir de vivências comuns observadas com olhar atento, fica claro que o tema é mais que relevante e que pode, sim, despertar importantes mudanças no tecido social, desde que isso ocorra primeiro em nós.

JAMISON, Leslie. Exames de empatia. São Paulo: Globo Livros, 2016.

*Recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.