sábado, 10 de outubro de 2015

Um poema de Ana Martins Marques

O que eu sei

Sei poucas coisas sei que ler                                                
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo da vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no
tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas

Poema de Ana Martins Marques, do belíssimo "O livro das semelhanças" (Companhia das Letras, 2015)

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Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte. Graduada em Letras, tem mestrado em literatura brasileira pela UFMG. É autora de A vida submarina e Da arte das armadilhas, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional em 2012.

sábado, 3 de outubro de 2015

Sonhos em tempo de guerra



Sonhos em tempo de guerra é o primeiro volume de memórias do escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o. Nascido em 1938, em uma região rural do Quênia, ele cresceu sob o impacto da Segunda Guerra Mundial nas colônias britânicas. Este primeiro volume reúne as memórias de infância, nas quais o autor relembra o cotidiano e as peculiaridades de sua família (seu pai era casado com quatro esposas, e todas viviam próximas umas das outras, cuidando dos 24 filhos que formavam ao todo essa família) e, principalmente, destaca como as histórias da tradição oral ouvidas na sua infância, ao redor do fogo e em conversas em sua aldeia, contribuíram para que ele se tornasse um escritor. Vale lembrar que Ngũgĩ wa Thiong'o tem sido um dos autores cotados a ganhar o Prêmio Nobel nos últimos anos.

"Eu ansiava pela chegada dessas noites; parecia-me um glorioso alumbramento que histórias tão bonitas e às vezes assustadoras pudessem sair daquelas bocas. Para mim o melhor eram aquelas histórias nas quais a plateia se juntava para cantar o coro. A melodia era invariavelmente cativante; eu sentia como se fosse transportado a outro mundo de infinita harmonia, até mesmo na tristeza. Isso intensificava minha expectativa do que iria acontecer em seguida." (p. 34)

Os impactos da Segunda Guerra foram sentidos nas colônias, não apenas nas histórias que passaram a circular sobre os "ogros" comandados por Hitler e Mussolini e sobre os heróis, integrantes da comunidade, que estavam lutando pelo Império Britânico, mas pelas dificuldades que afetaram a vida na colônia, como a dificuldade de circulação de alimentos, que gerou períodos de fome e penúria em determinadas áreas. Os primeiros contatos com os homens brancos, algo que marcou a memória do autor e de sua comunidade, ocorreram em 1941, com os prisioneiros de guerra italianos, incumbidos de construir uma estrada de ferro de Nairóbi até o interior. A comunicação entre os italianos e os quenianos da aldeia se dava de forma rudimentar, e chega a ser engraçado as recordações do autor sobre as palavras mais recorrentes que ouviam, da qual deduziam um significado, e que passavam a representar um povo. No caso dos italianos, dada a repetição, passaram a ser apelidados de "Bono" por eles. A violência desses contatos, ainda que de forma sutil, também é descrita pelo autor:

"Houve um tempo em que eu não mais via o Bono Mayai caminhando ou pedindo coisas em nenhuma de nossas vilas. Eles não voltaram. [...] Mas os Bonos deixaram sua marca arquitetônica na igreja que ergueram perto da estrada na borda do Vale Rift em suas horas de descanso, e sua marca sociobiológica nas famílias desfeitas e nos bebês pardos, sem pais, nascidos nas várias aldeias que haviam visitado" (p. 44)

Com o fim da guerra em 1945, o retorno dos soldados, considerados os grandes heróis nesse imaginário infantil, também descreve de que forma a guerra deixa suas marcas, não apenas físicas, mas também psicológicas naqueles que dela participaram. A volta do meio-irmão do autor, que para ele havia lutado nos campos de batalha, mas que exercia na realidade um trabalho burocrático, sinaliza o desejo desse menino por uma educação melhor, que até o momento só esse meio-irmão parecia ter alcançado, e que para ele parecia um sonho impossível. Até o dia em que sua mãe lhe pergunta se quer ir para a escola, e os dois fazem um pacto: ela arcará com as despesas de mensalidade, mas precisa que ele faça sempre o seu melhor, mesmo diante das dificuldades que enfrentará, como não poder levar algo para comer ao meio-dia. É o desejo de aprender dessa criança, em uma escola com costumes diferentes do seu (há uma passagem bonita sobre o estranhamento que o jovem Ngũgĩ sente diante das orações silenciosas na escola - mais uma das marcas da colonização britânica-, que ele levou tempo para entender ser a forma que os colegas e professores rezavam, e que agora lhe era imposta) e a força dessa mãe, sempre preocupada muito mais com o processo de aprendizagem do que com os resultados, que transforma a vida desse menino através da educação.

"Percebo que mesmo as palavras escritas podem transmitir a música que eu amava nas histórias, particularmente a melodia dos coros. E no entanto isso não é uma história; é uma afirmação descritiva. Não traz uma ilustração. É uma imagem em si mesma e, contudo, mais do que uma imagem e uma descrição. É música. Palavras escritas também podem cantar" (p. 67, sobre quando ele aprende a ler)

Os fios que tecem essas memórias são feitos com a ternura e o olhar ainda inocente, cheio de esperança, que costuma caracterizar a infância. Através das memórias por vezes singelas de Ngũgĩ wa Thiong'o passeamos não apenas pelo tempo e por uma região diferente da nossa, mas por uma parte da história pouco conhecida por nós: o olhar de África sobre a colonização. E vemos, aos poucos, como cada uma das muitas histórias vividas e narradas por diversas pessoas contribuiu na formação de um escritor.

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Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em Kamirithu, Quênia, em 1938, período no qual o país ainda era colônia do Império Britânico. Autor de romances, contos, peças de teatro e ensaios, no fim da década de 1960 renunciou à língua inglesa, ao catolicismo e ao nome de batismo, James, e passou a escrever em gĩkũyũ, língua bantu. Em 1977, foi preso por conta de uma de suas peças. Desde 1992, é professor de literatura comparada na Universidade da Califórnia, Irvine.


Ngũgĩ wa Thiong'o. Sonhos em tempo de guerra: memórias de infância. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015. Trad. Fábio Bonillo e Elton Mesquita.

 *Escolhi e recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.