sábado, 22 de agosto de 2015

Lendo a ditadura



Convidei alguns amigos que, assim como eu, ficaram incomodados com alguns pedidos absurdos de intervenção militar e retorno da ditadura em manifestações públicas recentes. Manifestações que só aconteceram porque vivemos em uma democracia (é sempre bom lembrar que manifestações políticas não são permitidas na ditadura, período marcado por prisões sem julgamento, torturas, assassinatos, desaparecimento de pessoas, silenciamento, censura...). 

O projeto Lendo a Ditadura tem por objetivo ler e comentar obras literárias e filmes brasileiros que abordem o período da ditadura militar no Brasil, pois acreditamos que conhecer a nossa história é um passo importante para não repetirmos erros do passado. Todos estão convidados a nos acompanhar nessas leituras. As publicações dos vários blogs e canais que estão participando do projeto, a quem agradeço pelo entusiasmo com que abraçaram a ideia, serão reunidas no blog Lendo a Ditadura. Esperamos que as leituras e as discussões sobre esses livros e filmes sejam proveitosos e que ajudem a relembrar um período de nossa história que não deve ser esquecido e que ainda precisa ser discutido. Boas leituras!



domingo, 16 de agosto de 2015

A distância entre nós



A distância entre nós, que acaba de ganhar uma reedição linda pela Globo Livros, foi o livro que transformou a Thrity Umrigar em uma escritora com mais de 200 mil exemplares vendidos no mundo. Mesmo já conhecendo a escrita dessa autora indiana, não pude deixar de me surpreender com as diversas questões que ele aborda.

O livro tem duas personagens principais, Bhima e Sera, que, por serem mulheres, compartilham as mesmas dores: a opressão de um sistema patriarcal que reprime a liberdade das mulheres e a violência a que estão sujeitas em suas variadas formas. Mas aí a autora ganha muitos pontos: apesar de tudo que as une, existe a diferença de classes que separa as duas personagens e torna diferente as formas de violência que sofrem. Uma perspectiva que não deve ser desconsiderada quando falamos em feminismo.

Bhima trabalha como empregada doméstica na casa de Sera, que é casada com um homem rico, que a mantém em casa, sem poder trabalhar. Há uma cumplicidade entre as duas estabelecida em mais de vinte anos de convivência, pois ao longo desse tempo, apesar da distância social que as separam, estabeleceu-se entre elas uma solidariedade, visto que se ajudaram em diferentes momentos de suas vidas.

A vida confortável de Sera, aparentemente perfeita vista de fora, era na verdade um inferno. Casada com um homem agressivo, Sera era constantemente espancada por ele. Envergonhada por ter esse tipo de tratamento mesmo tendo uma família bem estruturada, formada por intelectuais, Sera se cala diante das agressões. É Bhima quem cuida dela diversas vezes, sempre a encorajando a reagir, a não aceitar esse tratamento. É bem interessante a forma como a Umrigar trata da questão da violência contra a mulher, mostrando que é um problema que atinge as mulheres também da classe alta, desconstruindo o mito de que só as mulheres das camadas mais pobres da população sofrem violência física. A violência psicológica também é abordada, e está presente no casamento de Sera que, mesmo depois da morte do marido, ainda sofre com as lembranças de anos de opressão e sofrimento.

A neta de Bhima, Maya, tem dezessete anos e aparece grávida, sem nunca dizer quem é o pai da criança. Na Índia, uma menina grávida sem  ter se casado está marcada para sempre como uma desonra para a família, pois tudo o que importa é o casamento. A violência desse sistema patriarcal afeta Maya profundamente, que passa a andar triste pelos cantos, deprimida, sem saber o que será de seu futuro. Com a ajuda de Sera, que decide que esta é a melhor opção para não comprometer o futuro da menina, Maya faz um aborto em uma clínica particular por estar acompanhada de Sera. Se estivesse acompanhada de sua avó, Bhima, que não tem dinheiro e não teria condições de arcar com as despesas de um atendimento particular, talvez a saúde de Maya e até mesmo a sua vida fossem comprometidas. E outra vez a Thrity Umrigar ganha pontos por trazer essa discussão à tona, mostrando a importância de discutirmos sobre a saúde da mulher e o direito que todas devem ter de tomar as decisões sobre o seu próprio corpo, independente da classe social a que pertençam.

Enquanto Maya sofre em silêncio pela gravidez seguida de um aborto ainda tão jovem, a filha de Sera comemora a sua primeira gravidez. E nesse momento a crítica social que Thrity Umrigar faz a esses diferentes mundos que coexistem sem quase nunca se tocarem demonstra toda a crueldade das desigualdades sociais.

Além disso, a autora ainda aborda a grande disseminação da AIDS na Índia, mostrando como as mulheres são mais vulneráveis à contaminação, muitas vezes pelos próprios maridos, também por não terem controle e autonomia para se protegerem e cuidarem de sua saúde.

Como já deu para perceber, apesar da narrativa envolvente de Thrity Umrigar, que é uma ótima contadora de histórias, esse é um livro sofrido justamente por sabê-lo real e, mais ainda, por saber que histórias como a de Bhima, Maya e Sera não ocorrem apenas na Índia, mas em nosso próprio país e em vários outros lugares do mundo. São histórias que estão mais próximas de nós do que gostaríamos. São muitos os temas tratados nesse romance e todos envolvem o universo feminino, o que só o engrandece: fala-se de aborto, de estupro, de violência doméstica, de assédio no ambiente de trabalho, na desigualdade ao acesso aos serviços básicos de saúde, de preconceito e também de injustiça.

Mas, mesmo sendo doloroso refletir sobre essas questões, é importante não esquecermos a importância dessa reflexão, principalmente nos dias de hoje. A distância entre nós é um livro que deve ser lido e compartilhado pelas reflexões sobre o feminismo que histórias tão dolorosamente verdadeiras como as das personagens nos possibilitam. É um livro excelente para discussões em um clube do livro, por exemplo. E hoje passou a ser o meu livro preferido da Thrity Umrigar.

UMRIGAR, Thrity. A distância entre nós. São Paulo: Globo Livros, 2015.

Thrity Umrigar nasceu em Mumbai, na Índia, em 1961. Mudou para os Estados Unidos aos 21 anos e trabalhou como jornalista por quase 20 anos. Atualmente dá aulas de literatura e escrita criativa na Case Western Reserve University, em Cleveland, e colabora com jornais como o The Washington Post e The Boston Globe. É autora de A hora da história e A doçura do mundo.

Escolhi e recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Escuta - poemas


Certo
(Eucanaã Ferraz)

Hoje quero te falar de permanecer vivo.

Observa que há árvores velhas e a juventude é 
       longa;
perde ao menos uma hora restaurando os azulejos
       brancos
da tua infância; sobretudo abre as janelas que dão
      para o céu
de Nova Friburgo, terra onde as terras são
principados
de toda a gente e à vista nua divisamos planetas
em varandas alvoroçadas por malmequeres só de
      luz;
hoje quero te falar de junhos nervosos de tantas
      alegrias.

Se tudo te parece frágil é verdade é frágil tudo;
mas venho te dizer que tudo permanecerá vivo
nesta hora em que te digo agora.

FERRAZ, Eucanaã. Escuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 
Para ler um trecho do livro, clique aqui.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Estação Atocha


O romance é narrado em primeira pessoa por Adam, um jovem poeta estadunidense que ganha uma bolsa de estudos em uma prestigiosa instituição para desenvolver um projeto de pesquisa em Madri sobre poetas espanhóis e seu papel na guerra civil espanhola. Mas Adam é um rapaz que não acredita em si mesmo, que não sabe o que quer da vida, e que está o tempo inteiro refletindo sobre as suas menores ações, buscando analisar o que os outros vão pensar a respeito dele, e se isso está de acordo com o que ele quer que os outros pensem, ainda que isso seja para ele uma grande representação. Nem ele mesmo sabe como conseguiu essa bolsa de estudos, se pouco sabe sobre seu próprio projeto de pesquisa e sabe pouco do idioma.
Usuário de drogas como maconha e haxixe, de medicamentos para depressão e ataques de pânico em altas dosagens, tudo isso associado a um grande consumo de álcool, fazem de Adam um ser caótico, que nada tem de herói. Ele usurpa não apenas versos que lê em outros livros, modificando-os para se apropriar da poesia de outros poetas, como também se apropria de histórias que outras pessoas lhe contam e depois as utiliza em outro contexto, numa tentativa bem desajeitada de criar uma narrativa de si mesmo um pouco mais interessante do que Adam acredita ser.
Durante a leitura, que se arrasta até quase a metade do livro e que depois ganha um pouco mais de ritmo, não consegui me identificar com o protagonista, nem consegui compreender por que dizem que é um romance engraçado. O que Adam quer da vida? Ser poeta? Se tornar um acadêmico? Casar e ter filhos? Ele não sabe e o livro trata basicamente disso, da falta de certeza sobre o que se quer fazer da vida e de como dessa forma Adam passa por ela sem sentir, nem o que escreve, nem o que se passa ao seu redor, sem estabelecer laços afetivos. Diante do atentado terrorista que ocorre em Madri na Estação Atocha que dá nome ao livro (e que é também título do poema "Leaving the Atocha Station" de John Ashbery, poeta muito lido por Adam durante todo o romance e sobre o qual o autor já escreveu ensaios), podemos situar no tempo o romance de Ben Lerner. Porém, Adam não consegue se envolver nem com os protestos políticos que tomam conta das ruas da cidade após a tragédia (o atentado ocorreu em março de 2005, matando mais de 200 pessoas e deixando muitos feridos, a maioria imigrantes), nem muito menos se solidarizar com tantas mortes de inocentes ocorridas a poucos metros do apartamento onde vivia. O egoísmo de Adam só faz com que ele pense nas chances que ele teve de ter morrido/sobrevivido.
O texto, em intenso fluxo de consciência, parece encenar as angústias desse jovem poeta diante da experiência artística, na busca por compreender se ele é mesmo digno de sua arte. Alguns leitores podem achar que este é um romance de formação, que ao final da história alguma transformação ocorreu em Adam. Outros, como ocorreu comigo, podem não ver transformação nenhuma nesse personagem que permanece imerso em si mesmo, nos seus pensamentos e concentrado em sua própria observação do mundo, descrente de seu papel enquanto artista ou cidadão. Duas possibilidades de interpretação sobre a transformação do personagem que deixam para o leitor essa reflexão sobre as intersecções entre arte e realidade na contemporaneidade.

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"Por muito tempo, eu convivera com a preocupação de ser incapaz de passar por uma profunda experiência artística e me custava acreditar que alguém mais fosse, pelo menos entre os meus conhecidos. Nutria profundo ceticismo a respeito das pessoas que alegavam que um poema ou uma música tinham "mudado a vida delas", especialmente porque, observando-as antes e depois dessa experiência, não conseguia detectar a menor mudança. Embora quisesse dar uma de poeta e apesar de ter ganhado minha bolsa de estudos na Espanha graças a meu suposto talento literário, eu só conseguia apreciar a beleza dos versos quando os encontrava citados em trechos de prosa, nos ensaios que os professores da faculdade me mandavam ler, com as barras substituindo as quebras de linha, de modo que o que me impressionava não era um poema em particular, mas o eco de uma possibilidade poética. O que realmente me interessava na arte era a desconexão entre a minha percepção das obras de arte físicas e as alegações feitas em nome delas. A sensação mais próxima de uma profunda experiência artística que eu tivera talvez tenha sido a vivência dessa desconexão, uma profunda experiência da ausência de profundidade". (p.9)

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LERNER, Ben. Estação Atocha. Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2015.

Escolhi e recebi este livro como cortesia da Editora Rádio Londres.