quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Cem: o que aprendemos na vida


Os dias aqui no Brasil não andam muito fáceis e os livros são sempre um bom abrigo para recuperar as forças e a fé na humanidade. Cem: o que aprendemos na vida chegou para mim como um abraço, desses que trazem verdadeiro acalanto, por meio da indicação de uma grande amiga. Um livro ilustrado e bem curtinho que você lê em minutos, mas que você vai querer ter por perto para ler sempre que for necessário lembrar de coisas importantes, é assim que definiria esse livro, que pode passar despercebido por ser ilustrado (por que esse preconceito com os livros ilustrados, né?), mas não cometa esse erro: vale muito a pena. Basta dizer que tive vontade de ter muitas cópias dele para dar de presente para quem eu amo.


Em Cem: o que aprendemos na vida, cada página traz uma reflexão sobre o que aprendemos em cada idade, do momento que nascemos até completar cem anos e refletir sobre essa jornada, que por vezes nos passa batido, é uma daquelas formas gostosas de olhar para o nosso presente e vivê-lo com mais atenção, sem sofrer tanto pelo que passou ou pelo que virá, porque o que importa nisso tudo é mesmo nossa jornada nessa vida, as coisas que vivemos e aprendemos diariamente, por menores que sejam, as pessoas que amamos e que nos amaram também.

Se só puder ler um livro nesse final de ano, que seja esta bela reflexão sobre a vida. Garanto que vai valer a pena.

E aí, o que você aprendeu hoje?

A vida pela frente



Vencedor do Prêmio Goncourt em 1975, A vida pela frente é um dos livros mais vendidos do século XX. Alguns anos depois, quando o autor faleceu, descobriram, em virtude de um documento deixado por ele, que Émile Ajar era na verdade um pseudônimo do já premiado autor Romain Gary, nascido na Lituânia e muito popular na França. O Prêmio Goncourt, que não pode ser concedido duas vezes ao mesmo escritor, nesse caso foi. Se os prêmios comprovam alguns talentos, pelo visto não podemos ter dúvidas sobre o talento de Romain Gary.

Apesar da fascinante história sobre sua autoria, o que mais nos cativa no livro é talvez a atualidade do seu enredo: a narração a partir da perspectiva de uma criança abandonada pelos pais, descobrindo o mundo ao seu redor nem sempre da forma mais suave; personagens que vivem à margem da sociedade como os imigrantes, as prostitutas, travestis, os pobres, os órfãos, os judeus e árabes na França da época; a humanidade das relações que surgem entre aqueles que são desprovidos de muitas coisas, sejam elas materiais ou não, e que se agarram a esses laços como uma forma de se conectarem à vida. 

O narrador, Momo, é um garoto de dez anos de idade que vive sob os cuidados de uma senhora judia, Madame Rosa. Sobrevivente de Auschwitz, e mais tarde prostituta em Paris, agora por conta da idade avançada ela está aposentada e cuida de crianças diversas, em grande parte filhos de prostitutas e órfãos em seu apartamento, num bairro habitado por imigrantes ilegais, árabes, judeus e negros. Os tormentos do passado ainda assombram Madame Rosa, que vive num medo constante e mantendo uma espécie de abrigo no porão do prédio para alguma emergência. É nesse abrigo, chamado por Momo de buraco judeu, que às vezes ela encontra alguma paz durante a noite quando tem pesadelos.

O cuidado com as crianças acaba sendo também responsabilidade de Momo, a criança mais velha do grupo, que acaba por amadurecer cedo demais ao perceber a fragilidade da condição física, mental e emocional de Madame Rosa, por quem nutre verdadeiro afeto. Apesar da maturidade e da ternura que tem com todas as pessoas que conhece no bairro e que acabam por constituir sua família, Momo se sente sozinho e ainda sonha em um dia reencontrar a mãe, sobre quem nada sabe. É a ternura de Momo com os mais velhos a responsável pelas cenas mais bonitas deste romance. 

Romain Gary consegue captar em A vida pela frente a nossa fragilidade diante da vida, ao mesmo tempo em que nos faz perceber que é impossível viver sem amor. São as relações humanas os laços que nos fazem continuar vivendo, apesar das dores e das perdas. Senti vontade de abraçar Momo diversas vezes nesse livro, que vejo um pouco como um romance de aprendizagem, no qual um garotinho nos ensina a olhar a vida de frente e viver, apesar de.

Espero que mais livros deste autor sejam publicados em breve por aqui. 

AJAR, Émile (Romain Gary). A vida pela frente. Trad. André Telles. São Paulo: Todavia, 2019. 192 páginas.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

O peso do pássaro morto



Romance de estreia da escritora paulista Aline Bei, O peso do pássaro morto (2017) foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante com menos de quarenta anos. O romance - assim classificado pela autora -  é um poema narrativo que apresenta uma forma fragmentada, por vezes usando os recursos da poesia, como as rimas, a sonoridade das palavras e a construção de imagens poética, narra a vida de uma menina, uma protagonista cujo nome não sabemos, da infância à idade adulta, constituindo-se portanto em uma narrativa de formação.

Cada capítulo é nomeado de acordo com a idade da personagem e cada idade é marcada por uma perda que transforma a personagem pela violência com que acontecem. Segundo explicado pela autora em uma entrevista, a ideia do livro surge a partir de uma cena que acontece ainda na infância da personagem, quando ela segura um pássaro e este morre em suas mãos. Assim, este é um romance sobre perdas e a sensação de desamparo que elas acarretam na vida de qualquer um de nós. É um romance narrado pela perspectiva social feminina, registrando também as diversas violências que uma mulher sofre ao longo da vida, problematizando o impacto que o silêncio sobre a violência vivida tem na vida das sobreviventes. É também um romance que nos faz pensar sobre a maternidade, e os mitos que a cercam, levando muitas vezes as mães ao sofrimento psíquico.

O peso do pássaro morto é um belíssimo romance de estreia, e que consegue falar de temas muito importantes com grande leveza.

BEI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, 2017.

O homem que plantava árvores



Em tempos de tantas tragédias ambientais, esta fábula de Jean Giono surgiu como um consolo. A edição linda e ilustrada da Editora 34 foi um presente à parte.
A história é muito simples, e talvez mesmo por isso, seja uma dessas leituras que são como um abraço e alimentam em nós um tantinho de esperança. Ao passar por um pequeno vilarejo, o narrador avista um homem que caminhava e plantava árvores. Era isso que fazia dos seus dias, apesar da sua idade, ainda encontrava-se em forma. O lugar já estava bem deserto e sem árvores, não havia mais trabalho por ali e as pessoas saíam em busca de outras opções. Mas o homem continuava caminhando todos os dias, retirando as bolotas de carvalho do bolso e plantando fileiras e mais fileiras do que um dia seriam árvores, se vingassem.
A presença daquele homem ali chama a atenção do narrador, que dele se aproxima e com quem conversa. A história daquele homem que plantava árvores apesar da devastação ao redor despertava mesmo a curiosidade do narrador. Anos depois, ao retornar ao vilarejo, o narrador não pode deixar de notar a mudança na paisagem. A vegetação ali havia se transformado. E o homem continuava por ali, caminhando todos os dias e plantando suas árvores, em sua persistente determinação em fazer sua parte, apesar de.
Na última vez que o narrador ali regressa, anos depois, depois da grande guerra, encontra o cenário transformado. Ali havia uma floresta, que ninguém sabia como havia brotado ali e era digna de investigação. O narrador então sabe que o velho, agora com a idade bem mais avançada, se não tivesse morrido, era o responsável por tudo aquilo. 
Uma história que poderia ter sido totalmente inventada, não fossem as histórias tão inspiradas nas vidas que nos rodeiam, como os leitores poderão ver no prólogo do livro, sobre o qual não comentarei, que é para não tirar o encanto e a surpresa. Apenas digo que vale a pena.


GIONO, Jean. O homem que plantava árvores. Trad. Cecília Ciscato e Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2018.

sábado, 17 de agosto de 2019

Segunda-feira



Segunda-feira

O que é mais triste que um trem?
Que parte quando deve partir,
Que tem somente uma voz,
Que tem somente um caminho.
Nada é mais triste que um trem.

Ou talvez um burro de carga.
Está preso entre duas barras
E não pode olhar para o lado.
Sua vida é só caminhar.

E um homem? Não é triste um homem?
Se vive há muito em solidão,
Se acha que o tempo terminou,
Um homem também é coisa triste.

PRIMO LEVI. Mil sóis: poemas escolhidos. Tradução: Maurício Santana Dias. São Paulo: Todavia, 2019.

Primo Levi nasceu em Turim, Itália, em 1919. É autor de É ISTO UM HOMEM?, testemunho literário do Holocausto.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Benedetti


Luto

Luto (Mario Benedetti)

Hace una semana que estoy de luto
se me murió una idea en el papel
estoy buscando una que la sustituya
pero nadie responde / son de otros

mi pobrecita idea / la finada
iba armando una historia de mí mismo
ahora ha quedado en blanco / casi en gris

transito en el olvido / sin perdones
y el olvido también está de luto



BENEDETTI, Mario. Biografía para encontrarme. Barcelona: Debolsillo, 2015.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

A máquina do poeta




Em um momento difícil da vida do poeta Carlos Drummond de Andrade, Drummond escreveu em carta ao também escritor Mário de Andrade que “era grato à literatura por tê-los aproximado”. Drummond, que estava em um momento de crise em sua vida, achando que não iria mais escrever por estar infeliz trabalhando como professor no interior de Minas Gerais, recebe do amigo Mário aquela dose de ânimo e de incentivo que fazem toda a diferença, afinal, depois dessa fase Drummond passou a escrever e publicar seus poemas, contos e crônicas até o final de sua vida. 

Neste pequeno livro, ilustrado e escrito por Nelson Cruz, registra-se este momento de dúvida em tempos difíceis (mais atual impossível) em que a amizade, nascida do amor aos livros, é o que faz a vida seguir em frente.


A amizade entre os dois escritores, compartilhada durante anos por meio de cartas, é algo que acontece com frequência entre escritores, mas também ocorre entre leitores. Este infanto-juvenil do Nelson Cruz chegou até mim no momento mais certo, como costuma acontecer com os livros lindos de minha vida. O momento é tão incerto quanto o que Drummond vivia, e o livro chegou junto com um abraço de um amigo encontrado também por conta do amor pelos livros e pelas palavras, que finalmente eu tive a chance de abraçar pessoalmente, recebendo uma dose grande de carinho e incentivo para continuar, apesar de. Obrigada, Bruno Leite, amigo querido, pela amizade de sempre e por este presente. Como disse Mário de Andrade a Drummond: “Escrevo mesmo só para lembrar você de que existo. Em amizade eu sou assim”. Somos. Um brinde à amizade, que nos abraça quando precisamos de força para acreditar na vida.

CRUZ, Nelson. A máquina do poeta. São Paulo: Edições SM, 2015.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Sumchi





Sempre achei que relembrar a infância é um ato de coragem. Abrir um espaço na página em branco para falar de memórias e de nosso olhar sobre a vida é como desnudar o coração de todas as máscaras da vida adulta. Sempre gostei desses livros em que os escritores voltam às memórias de sua infância, sejam ela reais ou fictícias, por meio da voz de um dos personagens, como é o caso de Sumchi, este pequeno e doce livro do já saudoso Amós Oz. Nesta fábula de amor e aventura, Sumchi, um garoto de 11 anos de idade, nos transporta para as ruas de Jerusalém para narrar as aventuras pelo bairro, as provocações dos outros meninos da vizinhança, a emoção de ter ganhado uma bicicleta de presente, sua relação com um tio que o incentivava a sonhar e o amor, o primeiro amor, dele por Esti, uma colega de escola. O entusiasmo pela vida e pela capacidade de imaginar e sonhar está presente em cada página deste pequeno livrinho, que nos enternece por nos lembrar da infância, quiçá de nós mesmos, nessa época onde os sonhos talvez estivessem ainda mais vivos e sem medo de existir. O único porém é que, por ser uma fábula, acaba rápido demais, deixando um gosto de quero mais.

OZ, Amós. Sumchi: uma fábula de amor e aventura. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Úrsula

Publicado em 1859, o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, é considerado o primeiro romance abolicionista de autoria feminina publicado no Brasil e obra inaugural da literatura afro-brasileira. Em tempos de resgate da literatura produzida por mulheres no país, é de fundamental importância dedicar alguns minutos a saber mais sobre a vida dessa maranhense que, apesar do contexto social do seu tempo, escravocrata e patriarcal, no qual às mulheres não era dado muito espaço, escreveu e publicou contos, poesias e o romance Úrsula como forma de problematizar a sociedade do seu tempo. Mas por quê pouca gente já ouviu falar dessa escritora? Esta é uma pergunta igualmente importante para pensarmos inclusive a necessidade do crescente movimento de leitura em clubes de obras de autoria feminina, já que apesar de ter sido o primeiro romance abolicionista brasileiro, o romance Úrsula foi apagado por muito tempo da nossa historiografia literária. Vale lembrar então que a primeira edição de Úrsula foi publicada pela finada Editora Mulheres, que a partir de trabalhos de pesquisadoras e críticas literárias feministas teve um papel extremamente relevante no resgate da tantas autoras de nossa história literária. A Editora Mulheres, portanto, tem um papel histórico em nossa literatura e não deve ser esquecida, mesmo após o seu fechamento, após a morte de Zahidé Lupinacci Muzart, sua principal editora e idealizadora. Registro aqui meu desejo de que alguma editora inteligente resgate o trabalho incrível realizado pela Editora Mulheres, seja reeditando esses livros ou disponibilizando-os em formato digital para que tudo isso não se perca outra vez. É nosso dever cuidar de nossa memória, e os livros são parte indispensável dela.

 Quem foi então Maria Firmina dos Reis (1822-1917)?

Maria Firmina foi uma professora e escritora Maranhense, negra e filha ilegítima, ela não conheceu seu pai. Mudou-se de São Luís para Guimarães, no Maranhão, aos cinco anos de idade, quando passou a morar com a avó. Firmina conheceu obras literárias do romantismo brasileiro e francês, mas como não há registros que indiquem sua inclusão na educação formal, acredita-se que foi autodidata. Aos 25 anos foi aprovada em concurso público para a cadeira de instrução primária na vila de Guimarães, tornando-se a primeira mulher e conquistar o cargo em toda a província.
Em 1859, publicou Úrsula, o único romance abolicionista de autoria feminina em todo o mundo lusófono no período. Em 1880, aos 58 anos, fundou a primeira escola mista do Maranhão, o que provocou escândalo à época e resultou no fechamento da instituição após dois anos e meio. Sua obra, esquecida por mais de um século, inclui ainda contos, poemas e músicas.
[informações extraídas da edição de Úrsula das Edições Câmara].


 O enredo (se não curte spoiler, pule essa parte)

Úrsula narra a história de um triângulo amoroso, afinal, estávamos em pleno romantismo. Com descrições bem elaboradas, esta história não poderia deixar de ter uma mocinha, Úrsula, mulher branca, e também um mocinho, o jovem branco Tancredo, filho de uma família abastada da região. Os dois se apaixonam bem ao estilo Romeu e Julieta - com apenas um primeiro olhar. Há também um vilão, o tio de Úrsula, o Comendador, um homem que é capaz de tudo para ter o que quer. Mas Maria Firmina dos Reis apresenta muito mais: com personagens como Túlio, Susana e Antero, ela apresenta pela primeira vez na nossa literatura a perspectiva do negro escravizado, humanizando-os, dando a eles o espaço de refletirem e discorrerem sobre a própria escravidão, revelando que os brancos é que foram os verdadeiros bárbaros ao cometerem tantas violências contra o povo negro. Ao salvar o jovem Tancredo no início do romance, surge uma amizade leal entre Túlio e Tancredo, que concede ao seu salvador a liberdade. Personagens como Túlio, que apesar de todas as violências de sua condição de escravizado continua sendo um dos exemplos de grande sensibilidade e humanidade do romance, demonstram o quanto este livro é relevante ao quebrar o paradigma de representação dos negros até então presente na literatura. O que dizer então da negra Susana, que relata como foi sequestrada do seu país e dos horrores que passou no navio negreiro e desde que chegou ao Brasil na condição de escravizada. Apesar de serem personagens secundários, não se deixe enganar, caro leitor/ cara leitora, são os personagens negros que realmente dão brilho à história. 

Outra personagem interessante é Luísa B., a mãe de Úrsula, de quem nossa protagonista cuida com muito esmero e que é inválida. Depois de perder o marido, assassinado pelo tio de Úrsula, as duas passaram a viver uma vida mais simples, dada a condição financeira de ambas. Quando do acidente de Tancredo, Túlio o leva até a casa de Úrsula e Luísa B. para que este se recupere por lá. É quando Úrsula e Tancredo se apaixonam (aquele amor platônico, afinal estamos no romantismo). Mas eis que o vilão aparece: o tio de Úrsula, que há anos não aparecia pela região, encontra Úrsula, a linda donzela, e por ela se encanta. Sem saber que era seu tio, Úrsula sente medo daquele homem que aparenta ser maldoso e a observa com tanto desejo. O comendador planeja então raptá-la, já que a donzela não retribui o seu sentimento amoroso. Mas feito Romeu e Julieta, Tancredo e Úrsula se casam em segredo, e tal como o casal de Shakespeare, o amor dos dois também acaba em tragédia. Assassinado pelo tio de Úrsula, Tancredo morre em seus braços, deixando a personagem tão abalada com sua perda e seu destino ao lado do Comendador que Úrsula enlouquece e, em seguida, morre. Aqui temos a loucura como expressão da violência psicológica a que a personagem é submetida, e como acontece em muitas obras de autoria feminina, a personagem louca representa também a mulher que não aceita as condições que lhe são impostas, uma forma de subversão. É ou não é um novelão?

Acho importante destacar, já que falamos de apagamento histórico desde o início desta resenha, que o romance permaneceu esquecido por muito tempo, apesar de ter feito sucesso em sua época, quando foi publicado em folhetim. Uma cópia muito antiga foi encontrada por um pesquisador em um sebo e então ele passou a ser pesquisado por críticas feministas que fizeram um impressionante trabalho para levantar mais informações sobre esta autora e publicar sua obra. A última imagem desse post é a capa da edição de Úrsula publicada pela Editora Mulheres. Como a obra, esgotada há tempos, passou a ser cobrada em alguns vestibulares do Brasil, várias edições foram publicadas esse ano, por diferentes editoras. Agora resta a nós, leitores e leitoras, o nosso papel de ler e comentar este livro, de escrever resenhas sobre ele, de presenteá-lo sempre que possível. É nosso papel contribuir para que as vozes de mulheres incríveis como Maria Firmina dos Reis não sejam silenciadas outra vez.

Sabendo do preconceito que as mulheres enfrentavam e enfrentam também no mundo literário, Maria Firmina dos Reis começou o seu romance com um prólogo cheio de ironia e inteligência, pois nele, sob o véu da humildade, ela enfatiza a importância da escrita das mulheres e convoca muitas outras escritoras a terem a coragem de ousar e escrever, apesar das dificuldades sociais de seu tempo. Um clamor que, ainda nos dias de hoje, se faz necessário.

"Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. [...]
Deixai que a minha Úrsula, tímida e acanhada, sem dotes da natureza, nem enfeites e louçanias de arte, caminhe entre vós.
Não a desprezeis, antes amparai-a nos seus incertos e titubeantes passos para assim dar alento à autora de seus dias, que talvez com essa proteção cultive mais o seu engenho, e venha a produzir coisa melhor, ou, quando menos, sirva esse bom acolhimento de incentivo para outras, que com imaginação mais brilhante, com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal, tenham mais timidez do que nós". (trecho do prólogo de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Quatro velhos




Romances que exploram a velhice são raros na literatura brasileira. Os que conseguem tratar do assunto com delicadeza e sensibilidade, ainda mais raros. Foi exatamente isso que encontrei ao ler, de uma sentada só, o novo romance de Luiz Biajoni, Quatro velhos (2018), publicado pela editora Penalux. Biajoni, também autor de Elvis e Madona, que já apareceu aqui no blog e do qual também gosto muito, parece ter escrito seu melhor romance até o momento. Seu eu já tinha elogiado bastante Elvis e Madona, com o romance Quatro velhos digamos que foi um amor diferente.

O romance narra a história de um casal de velhos aposentados no interior de São Paulo, Lando e Ciça, que vivem uma vida pacata e já sem muitas novidades até que um dia outro casal, Ronald e Guinevere, mudam-se para a casa ao lado e surge entre eles uma grande amizade que ultrapassam as saudações vazias entre vizinhos tão comuns nos dias de hoje. As diferenças entre eles são muitas: enquanto o primeiro casal pertence à classe trabalhadora, e sempre viveu uma vida sem luxo e viagens, o segundo casal tinha uma condição financeira privilegiada e viajou o mundo, tendo vivido em Paris por um bom tempo. Após perder toda a fortuna por problemas na empresa de que eram proprietários, Ronnie e Never, como assim eram chamados, decidem recomeçar uma vida simples, procurando de fato viver e aproveitar o tempo de vida que ainda tem.

Lembranças, sonhos e um balanço de uma vida ocorrem na vida de todos os quatro velhos, que acabam por redescobrir juntos a importância das coisas simples da vida, reavaliando já na idade madura aquilo que de fato tem valor quando tudo mais se vai. Enquanto pode-se pensar que um romance sobre a maturidade, que trate de morte e perda, do envelhecimento do corpo físico, de luto e amizade, seja uma história triste, Luiz Biajoni nos mostra que não. Quatro velhos é um livro bonito e enternecedor sobre a vida e o que fazemos dela - certamente sobre o que levamos dela de fato. É um  romance que nos emociona e faz sorrir diante do inesperado que existe nas coisas cotidianas, como comer uma costelinha ou abrir um bom vinho pelo simples prazer de uma companhia. É um romance também musical, cheio de referências a canções belíssimas (que na minha edição vieram em um CD, afinal é um livro sobre uma galera old school, certo? Mas você pode ouvir as músicas aqui nesta playlist também). Afinal, as melhores histórias têm trilha sonora. E para mim as melhores histórias são as mais simples, as que falam do que há de bonito na vida que, às vezes, pela pressa ou por tanto trabalho, esquecemos de apreciar. Recomendo para novos e velhos, de todas as idades. 

Para ler uma amostra, clique aqui.

BIAJONI, Luiz. Quatro velhos. Guaratinguetá: Editora Penalux, 2018.

*Recebi este livro como cortesia do autor. 

sábado, 5 de janeiro de 2019

Estar onde eu não estou

*
Agora é janeiro de 2018
e tem 17 caixas no meu quarto
primeiro pensei em levar tudo comigo
mas me falaram que já que não sei como tudo vai ser
melhor deixar algumas coisas para trás
eu nunca tinha pensado que era possível
deixar algumas coisas para trás
não levar tudo comigo
escolher o que levar comigo
(deixar para trás não é a mesma coisa que apagar)

*

Um dia um monte de gente me disse
que eu tinha ganhado uma segunda vida
era sinal para eu viver diferente
eu disse que só sabia viver como eu vivo
acho que me falta imaginação
para ser outra coisa
até no meu diário eu escrevo a verdade
mas por isso sou ótima mentirosa
de tanto acreditar

Olivia Gutierrez. Estar onde eu não estou. Belo Horizonte: Crivo Editorial, 2018