A cabeça do santo é a estreia de Socorro Acioli, que já publicou alguns livros infanto-juvenis, no romance para adultos. Esta é a história de Samuel, um homem que acabou de perder sua mãe, Mariinha, cujo último pedido antes de morrer foi: acender uma vela para o padre Cícero, outra para São Francisco e outra para Santo Antônio, e ir encontrar o pai, que desapareceu há anos, e também sua avó, lá na cidade de Candeia.
A viagem de Samuel de Juazeiro do Norte a Candeia tem um tom de romaria, mas Samuel nunca alimentou a mesma fé pelos santos de sua mãe. Era por ela que fazia aquela viagem tortuosa, a pé, em condições tão difíceis. Samuel também não tinha mais para onde ir, nem mais ninguém no mundo. A viagem sofrida pelas estradas do nordeste me fez lembrar de outras maravilhosas histórias da nossa literatura: do Vidas Secas de Graciliano, do Alto da Compadecida do mestre Ariano, do ritmo de cordel da narrativa de A máquina, da Adriana Falcão. E foi justamente este tom bem brasileiro, regional, que me encantou nesta história.
Chegando em Candeia, no entanto, nada ocorreu como Samuel esperava: sua avó não lhe recebeu bem, seu pai não foi encontrado, provavelmente estava morto, e Samuel, exausto da viagem, ainda foi atacado por um bando de cachorros loucos. Ferido, encontra abrigo contra a chuva no que só mais tarde descobre ser a cabeça oca de um santo Antônio, caída ao lado da estátua do santo, perto de uma colina. É neste abrigo improvisado que Samuel conhece Francisco, com quem estabelece uma nova amizade, e onde ele começa a ouvir diversas vozes: as orações das moças da cidade, que reverberam dentro da cabeça do santo e que só Samuel pode ouvir. Santo Antônio é mais conhecido por ser o santo casamenteiro, então as orações das moças todas continham pedidos, alguns com destinatário já escolhido, outros sem nenhuma dica para o santo. Mas por que todas as mulheres do povoado queriam se casar? Porque o livro é o retrato de uma "tradição" que ainda persiste em grande parte do Brasil: a de que o único destino de uma mulher é o casamento, "porque no sertão, mulher que não casa é mandacaru sem flor" (pág. 75). A euforia de todas as mulheres da história para encontrar o mensageiro de santo Antônio e com isso "cumprir seu destino" é contada com humor e de forma alegórica, o que torna a leitura do livro bem divertida, mas não pude deixar de fazer esta reflexão durante a leitura. Talvez a história não tenha mudado tanto assim desde os tempos de José Lins afinal. O patriarcado ainda persiste com força como vemos na história, onde o prefeito é o dono da região, agindo de forma quase sempre corrupta e de acordo com sua vontade; onde as mulheres sofrem violência e são discriminadas por isso; onde os pais expulsam suas filhas de casa por uma gravidez inesperada, tudo em nome da moral e dos bons costumes: "Diga a sua irmã que, se isso for bucho, ela vá embora dessa casa amanhã mesmo que eu tô velho demais pra aguentar filha malfalada". (pág. 45)
A história do homem que ouvia as mensagens do santo muda a vida de Samuel, causa rebuliço na cidade, antes abandonada, que passa a receber cada dia mais e mais visitantes em peregrinação, fazendo prosperar todo o comércio local. E nesse sentido este livro é também uma reflexão sobre o surgimento dessas crenças que vão crescendo e se modificando ao serem contadas pelo povo.
Samuel, que no início do livro não acredita em muita coisa, depois de cumprir os pedidos de sua mãe e ter modificado a vida de muitas pessoas, não sem tentar tirar algum proveito por ouvir as orações feitas para o santo, termina por encontrar algo em que acredita, cumprindo também ele o seu destino.
A cabeça do santo é um livro bem gostoso de ler, a história é contada com humor e isso dá uma leveza ao texto que envolve o leitor nesse mundo fascinante e mítico do sertão, por isso acredito que agradará a um público bem diverso. Durante a leitura não pude deixar de pensar que este romance tão cheio de imagens da cultura popular brasileira daria uma ótima adaptação, tanto para o teatro quanto para o cinema. E fiquei feliz de ver uma das escritoras da chamada "nova geração" trazendo suas raízes para a literatura. Recomendo a leitura, é um livro brasileiríssimo.
ACIOLI, Socorro. A cabeça do santo. São Paulo: Companhia das letras, 2014. 170 páginas.
Socorro Acioli nasceu em Fortaleza, em 1975. É jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro. Foi aluna do prêmio Nobel Gabriel García Márquez na oficina Como Contar um Conto, em Cuba, e publicou diversos livros, entre eles A bailarina fantasma (editora Biruta) e Ela tem olhos de céu (editora Gaivota), que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013.