terça-feira, 29 de julho de 2014

Inês Pedrosa

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"Os livros contraem-se assim irremediavelmente, tragicamente. Não importa por onde comece a contaminação; há um cheiro, um restolhar de papel, e depois a gulodice alastra. Começa-se a ler muito antes de se saber localizar literaturas, nomes, géneros, e há nesse estrebuchar inicial qualquer coisa de sublime que definitivamente se perde quando crescemos e aprendemos a seleccionar o bom e o mau. Lembro-me de vaguear inebriada pelas pratelerias das livrarias, folheando as prateleiras de baixo à procura do livro que eu queria e não sabia qual era, revoltada com a ideia de que talvez o tal livro estivesse nas prateleiras de cima. Lembro-me dos dias em que um título, uma frase, me faziam trazer para casa ratoeiras onde os dedos se entalavam e os olhos esmoreciam.
Lembro-me de contar os dias que faltavam para a próxima mesada, jurando a mim mesma que desta vez não me precipitaria. Lembro-me, sobretudo, daquela rapariga de dezoito anos que nunca mais  voltei a ver".

Inês Pedrosa, A Instrução dos Amantes, pág. 102-103.
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sábado, 26 de julho de 2014

Os livros que devoraram meu pai

Ah, os livros que falam do amor aos livros! Será que é possível lê-los sem se apaixonar? A resposta é não se ele for escrito com a ternura que encontramos nas palavras de Afonso Cruz. Os livros que devoraram meu pai é um livro infanto-juvenil, mas os adultos que se permitem a liberdade de ler o que o coração sente vontade de ler e mergulharem nessas páginas, certamente terão que disfarçar um pouco no final da leitura por conta dos olhos marejados. É um livro doce que fala com encantamento sobre a leitura e as infinitas viagens que os livros nos proporcionam. É um livro excelente para ensinar aos pequenos (e também aos não tão pequenos assim) que a paixão pela leitura pode ser aprendida em casa, com os pais, com os avós, com quem gosta de ler. E esta é provavelmente a melhor herança que podemos deixar.

O enredo conta a história de Elias Bonfim, um menino que perdeu o pai muito cedo e, segundo lhe contaram, vítima de um enfarte. Vivaldo Bonfim, pai de Elias, era um homem apaixonado por livros, que gostava muito de ler. Vivaldo trabalhava em uma repartição pública  e fazia todo o possível para aproveitar cada minuto do dia e ler, mesmo que para isso deixasse o trabalho um pouco de lado. Vivaldo tinha no sótão da sua casa uma biblioteca com muitos livros. Desde sua morte que o sótão ficou fechado, à espera do dia em que Elias estivesse preparado para se aventurar pelas muitas páginas de viagens e de sonho, e também de aproximação com o pai, que o esperavam. A avó de Elias lhe dá a chave do sótão quando sente que chegou o momento e Elias se encanta pela leitura, mas começa a desconfiar que seu pai não morreu como haviam lhe dito, e sim que ele havia desaparecido em um daqueles livros. Elias começa então a ler um livro atrás do outro, na tentativa de reencontrar seu pai. E a cada livro que Elias tira da estante para dar mais um passo em busca de encontrá-lo, mais a gente fica com vontade de ler os livros que o Afonso Cruz sabiamente colocou ali na história, despertando o nosso desejo de ler. Porque um bom livro sempre nos leva a muitos outros. São grandes clássicos da literatura universal que nos levam a outro e a mais outro, com a mesma simplicidade com que nós, leitores, geralmente falamos dos livros de que gostamos para um amigo, tornando-os acessíveis. E assim despertando nele o desejo de ler.
Estou certa de que muitos vão se reconhecer nessa história, independente da idade. "Porque um homem é feito de histórias". E que bom que são de histórias bonitas assim.

Afonso Cruz. Os livros que devoraram meu pai: a estranha e mágica história de Vivaldo Bonfim. São Paulo: Leya, 2011. 112 páginas.

Adélia.

Alvará de Demolição

O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes,
os caixões de janela se desprendem.
O que precisa nascer
aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.

Adélia Prado. A duração do dia. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.37


quinta-feira, 24 de julho de 2014

Vermelho Amargo

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"Coração do outro é uma terra que ninguém pisa. Minha mãe repetia essa oração quando recebia a visita de muda melancolia. Meu coração estava pisado pelo amor, e só eu sabia. Era um caminhar manso como pata de gato traiçoeiro. Fugia com meu amor para todas as penumbras. Seis minutos eram suficientes para a saudade me transbordar. Fui, desde pequeno, contra matar a saudade. Saudade é sentimento que a gente cultiva com o regador para preservar o cheiro de terra encharcada. É bom deixá-la florescer, vê-la brotar como cachos de tomates, desde que permaneçam verdes e longe de faca afiada. Nada tem mais açúcar que um tomate verde." (Bartolomeu Campos de Queirós, Vermelho Amargo, pág. 44)

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quarta-feira, 23 de julho de 2014

Mestre Ariano



"Tenho duas armas para lutar contra
 o desespero,  a tristeza e até a morte: 
o riso a cavalo e o galope do sonho. 
É com isso que enfrento essa dura 
e fascinante tarefa de viver".

Ariano Suassuna

(16 de junho de 1927 - 23 de julho de 2014)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Todas as cores do mundo

“No fundo, não há ninguém que não tenha uma história. (...) A todos acontecem o amor, a noite, o silêncio; a todos acontece a traição das coisas belas e desejáveis”.

Esta não é uma história real, mas bem que poderia ser. O jovem escritor italiano Giovanni Montanaro deu vida a um pequeno período da vida do pintor holandês Vincent Van Gogh do qual se tem pouco registro. Van Gogh, que só começou a pintar depois de adulto e, pelo que consta, não pintou um único quadro até os 27 anos, é, sem dúvida, um personagem fascinante para falarmos de paixões e muitos outros sentimentos que sua arte traduz.

Escrito em primeira pessoa, em forma de carta, a narradora dessa comovente história é a Teresa Sem Sonhos, uma menina que nasceu no vilarejo de Gheel, na Bélgica, lugar que ficou conhecido como uma colônia para doentes mentais por acolher as pessoas que na época eram consideradas "loucas" com alguma aceitação, convivendo com os demais membros da comunidade sem ficarem presas. 

Em sua carta para Van Gogh, Teresa conta toda a história do povoado e também a sua história para o pintor, que provavelmente nunca viria a receber essa carta. Teresa era filha de uma mulher chamada Sem Sonhos, da qual herdou não só o nome, mas também o estigma, apesar de ser perfeitamente lúcida. Sem Sonhos, que perambulava pela cidade por não conseguir dormir com medo de que alguém a machucasse, fica grávida provavelmente por ter sofrido algum tipo de abuso, e vem a falecer durante o parto, em um dia de muita ventania. A criança é acolhida por uma das famílias da região e mais tarde Teresa Sem Sonhos e seus tutores concordam em diagnosticá-la como louca para que ela possa continuar morando com uma das famílias ricas da cidade de Gheel, que acolhiam pessoas com doenças psíquicas em troca de dinheiro do estado. Dessa forma, Teresa cresce trabalhando como lavadeira para essa família e um dia conhece Van Gogh, que em uma de suas muitas andanças solitárias e sem destino acaba por chegar até a casa da família Vanheim, que lhe oferece abrigo por uns dias. Teresa se apaixona perdidamente por Vincent, que tinha uma personalidade bem conturbada e até então escrevia muitas cartas e desenhava coisas que quase ninguém apreciava. É Teresa que lhe apresenta o que lhe faltava: as cores para representar o mundo. Não como uma cópia da realidade, mas como elas eram em sua mente. É ela quem lhe diz que ele será um pintor célebre no futuro. Essa é sem dúvida a parte mais bonita da história que Montanaro criou, a que mostra a arte como possibilidade de salvação para essas pessoas que estavam aprisionadas pelo que os outros julgavam que eram. O nascimento desse pintor que encontrou na arte uma forma de se expressar e de registrar suas recordações.

Mas o livro trata também de outras questões não tão belas. Os critérios absurdos usados para definir quem era ou não louco na época são chocantes. E os "tratamentos" em muitos casos causavam eram o que por fim, após muito sofrimento físico e psicológico, causavam a loucura nessas pessoas, julgadas apenas por serem diferentes, seja por sua personalidade, seja por sua sexualidade. O sofrimento de Teresa nos comove e nos faz refletir sobre as muitas vidas que certamente se perderam por conta da não aceitação da diferença e dos muitos abusos cometidos em nome da "ciência", de uma religião, ou uma possível "cura".

Todas as cores do mundo é uma história triste sobre um amor que não se realizou, que se perdeu pelos caminhos que os dois seguiram apesar de terem tanto em comum. Mas é bonito imaginar que foi por um amor tão inocente que um dos maiores pintores que conhecemos descobriu o seu talento e o seu destino.

Montanaro, Giovanni. Todas as cores do mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. 144 páginas. Tradução Joana Angélica d'Ávila Melo.

Para ler o primeiro capítulo do livro, clique aqui.

E como Van Gogh é um dos meus pintores preferidos ('os girassóis" é um dos quadros de que mais gosto), compartilho também o link para o Museu Van Gogh para aqueles que quiserem saber um pouco mais sobre sua biografia e também conhecer um pouquinho de suas obras, algumas delas são descritas no decorrer da história.





domingo, 20 de julho de 2014

Para onde vão os guarda-chuvas

Desde A solidão dos números primos que eu não encontro um livro com um título tão lindo. Já comentei aqui sobre o talento de Afonso Cruz para dar título aos livros quando falei de outro livro do autor que acaba de ser lançado pela Alfaguara no Brasil: Jesus Cristo bebia cerveja. Comecei a ler as 620 páginas de Para onde vão os guarda-chuvas guiada pela curiosidade que o título despertou em mim, e me mantive presa ao livro até a última página.
O enredo conta a história de um homem, Fazal Elahi, que era muito bom e que gostaria de ser invisível e passar pela vida e pelas pessoas sem ser visto. Ele se casa com uma mulher que era o seu oposto, Bibi, uma muçulmana que gostava de andar pelas ruas com os cabelos soltos e de música estadunidense. Os dois tem um filho, Salim, pelo qual Fazal Elahi é apaixonado. Seu filho, contudo, é muito diferente de Fazal e em muitos momentos demonstra desde cedo certa dose de crueldade.

“Fazal Elahi olhava para o filho, maravilhado: nunca tinha visto nada tão grande aparentar ser tão pequenino”. (pág. 56)

O amor de um pai por um filho é retratado com muita ternura na escrita de Afonso Cruz, assim como nas imagens e ilustrações, também do autor, que intercalam e complementam o texto fazendo com que o livro em si seja um objeto de arte. Essa edição é tão linda e feita com tanto cuidado, que durante a leitura eu só imaginava duas possibilidades: ser publicada também pela Alfaguara no Brasil sem mudar absolutamente nada ou ver o que a Cosac Naify faria para deixar ainda mais linda uma edição diferente desse livro. A triste notícia é que ainda não há previsão de publicação de Para onde vão os guarda-chuvas aqui no Brasil (o que me faz seguir perguntando: o que essas editoras estão esperando para publicar mais livros do Afonso Cruz?)

Ainda sobre o enredo, Bibi, tempos depois, abandona seu filho e seu marido aos cuidados de sua cunhada, Aminah, e foge com seu amante em busca de liberdade. A tristeza de Fazal só aumenta quando, em um trágico incidente, seu filho Salim é morto por soldados norte-americanos. Diante de tão profunda dor, Fazal busca encontrar algum consolo, algo que atenuasse de alguma forma a dor que sentia por perder seu filho. Entre os muitos conselhos que recebe está o de adotar uma criança americana. Em entrevista, o Afonso Cruz afirmou que usou como inspiração para o livro uma história que ouviu sobre Gandhi, na qual um homem hindu procura o sábio em busca de orientação, pois não sabe o que fazer para continuar vivendo depois que seu filho foi morto por um muçulmano. A orientação que o homem recebe de Gandhi é a de adotar uma criança muçulmana pois para ele o único consolo possível é verdadeiramente perdoar através do amor.

No romance, Fazal Elahi encontra um órfão americano, Isa, com uma história já cheia de muitas tristezas, e que vivendo nas ruas aprendeu ou acostumou-se a ser invisível aos olhos de todos. Isa, o menino adotado por Fazal, é uma criança sensível e sozinha, que mais do que tudo quer ser amada. É esse desejo de Isa que dilacera nosso coração quando terminamos de ler essa história. Torcemos por ele até o fim, carentes que estamos de finais felizes.
São muitos os assuntos abordados nesse livro, como o trabalho infantil, a violência contra a mulher, como as nossas crenças nem sempre nos permitem ver as coisas como elas realmente são. A violência está muito presente nessa história. Este é um livro que fala basicamente sobre a perda e nossa capacidade de reencontrar na vida e nos outros as pessoas e as coisas que perdemos. É um livro que nos mostra que a vida é feita de bons e de maus momentos, como um tabuleiro de xadrez. E nesse tabuleiro, as relações entre as personagens, e as muitos outras personagens que não citei aqui, são tecidas como uma rica tapeçaria em cujos fios o leitor fica envolvido até o último momento.

Muitos leitores reclamaram do final do livro em alguns comentários que li na internet. Mas acho que nenhum outro final seria possível nesse livro, que é nada menos que brilhante. E como todo grande livro, tem o dever de nos fazer pensar, de nos fazer sofrer, de nos incomodar para depois, com sorte, nos transformar em algo melhor.

Achei bonito chegar ao final dessa história e encontrar no livro este recado do autor (imagem ao lado), pois assim como ele acredito que não apenas a escrita, mas a leitura, pode sempre nos ajudar a atenuar as dificuldades da vida, a diminuir a nossa dor. 

"A minha mãe, Sr. Elahi, interrogava-se para onde vão os guarda-chuvas. Sempre que ela saía à rua, perdia um. E durante toda a sua vida nunca encontrou nenhum. Para onde iriam os guarda-chuvas? Eu ouvia-a interrogar-se tantas vezes que aquele mistério, tão insondável, teria de ser explicado. Quando era jovem, pensei que haveria um país, talvez um monte sagrado, para onde iam os guarda-chuvas todos. E os pares perdidos de meias e de luvas. E a nossa infância e os nossos antepassados. E também os brinquedos de lata com que brincávamos. E os nossos amigos que desapareceram debaixo das bombas. Haveriam de estar todos num país distante, cheio de objectos perdidos. Então, nessa altura da minha vida, era ainda um adolescente, decidi ser padre. Precisava de saber para onde vão os guarda-chuvas.
- E já sabe? - perguntou Fazal Elahi.
- Não faço a mais pequena ideia, mas tenho fé de encontrar um dia a minha mãe, cheia de guarda-chuvas à sua volta".

Cruz, Afonso. Para onde vão os guarda-chuvas. Lisboa: Alfaguara, 2013. 620 páginas.

Além de escrever, Afonso Cruz é ilustrador, realizador de filmes de animação e compõe para a banda de blues/roots The Soaked Lamb (onde canta, toca guitarra, harmónica e banjo). Nasceu em 1971, na Figueira da Foz, e haveria, anos mais tarde, de viajar por mais de sessenta países. Vive com a sua família num monte alentejano onde, além de manter uma horta e um pequeno olival, fabrica a cerveja que bebe. Em 2008, publicou o seu primeiro romance,A Carne de Deus – Aventuras de Conrado Fortes e Lola Benites e, em 2009, Enciclopédia da Estória Universal, galardoado com o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco – APE/Câmara Municipal de Famalicão. Escreveu, ainda, Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009), A Contradição Humana (Prémio Autores 2011 SPA/RTP; seleção White Ravens 2011; Menção Especial do Prémio Nacional de Ilustração 2011) e A Boneca de Kokoschka.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Adeus, João


Foi meu pai quem me fez gostar de João Ubaldo. A crônica de João no jornal era sempre muito esperada. Aprendi a esperar por ela também, aos domingos, apesar de não gostar muito de ler jornal na minha adolescência. Mas aquele texto ali era diferente. Não era nada chato. Falava de política, sim; outras vezes, eu achava graça do texto assim meio rabugento e reclamão, que fazia críticas tão precisas sobre coisas que aconteciam no nosso tempo. Gostava do senso de humor do autor. E compartilhar aquelas histórias com meu pai quando trocávamos o jornal de mãos marcou uma época boa de minha vida.

Na escola, ano de vestibular, tempo de grandes decisões e muitas emoções, tínhamos entre a lista de obras literárias a serem lidas para a prova um livro de João Ubaldo Ribeiro. Essa lista, que para muitos dos meus colegas era um pesadelo, para mim era a melhor parte dos estudos. Eu não conseguia entender aqueles que optavam por ler resumos encontrados aqui e acolá. Dividia meu tempo entre as outras matérias, muitas das quais eu detestava como matemática e física, com aquele momento delicioso de estudar literatura. Na semana das provas de português da escola, era aquela alegria. Quando minha mãe abria a porta do meu quarto para dizer alguma coisa e me via com um livro, antecipando aquela pergunta básica  "você não devia estar estudando?", eu logo dizia, toda contente: "estou lendo o livro que será cobrado na prova de literatura sábado, mãe". A melhor desculpa do mundo para poder ler literatura e sair dos números e fórmulas que eu detestava. Sentar para ler um livro como Sargento Getúlio nem parecia estudo "obrigatório", de tão prazeroso que era. Não entendia porque alguns dos meus colegas, aqueles que diziam que ler era chato (sabe de nada, inocente!) reclamavam tanto da lista de livros do vestibular. O único problema para mim era que o tempo de leitura era sempre pequeno demais, eu lia muito rápido e as horas do "meu descanso" da escola passavam mais rápido do que eu gostaria.

Eu já conhecia as crônicas de João Ubaldo, então sabia que o livro só podia ser muito bom e não me enganei. Foi um livro que me marcou muito, não só por ser uma obra genial, mas por me transportar de toda aquela pressão de provas e notas e decisões de carreira para um universo fascinante, não apenas por um lugar diferente, mas pela mente humana. Outro dia me lembrei que esse livro não tem ponto final. E hoje achei que ele merecia ser lembrado aqui, porque representa um pouco do que eu acho que os livros são: algo que não termina, que não acaba e que sempre nos leva por novos caminhos, por novas histórias, tão únicas como cada um de nós. 

Hoje cedo meu pai me ligou e disse que chovia bastante em Salvador. Lamentamos a notícia triste com a qual o dia de hoje começou. Não teremos mais aquelas crônicas.

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João Ubaldo Ribeiro (Itaparica, 23 de janeiro de 1941 — Rio de Janeiro, 18 de julho de 2014) foi um escritor, jornalista, roteirista e professor brasileiro, formado em direito e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi ganhador do Prêmio Camões de 2008, maior premiação para autores de língua portuguesa. Ubaldo Ribeiro teve algumas obras adaptadas para a televisão e para o cinema, além de ter sido distinguido em outros países, como a Alemanha. É autor de romances como Sargento Getúlio, O Sorriso do Lagarto, A Casa dos Budas Ditosos, que causou polêmica e ficou proibido em alguns estabelecimentos, e Viva o Povo Brasileiro.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Os Surdos


A história gira em torno do desaparecimento da filha de um banqueiro. Preocupado com a moça, o pai a aconselha a contratar um guarda-costas, o jovem Cayetano, que não tem muita experiência, mas é um ótimo atirador. Em um dia de folga do guarda-costas, a filha do banqueiro, Clara, é sequestrada. A partir daí a filha faz ligações estranhas de várias partes do país e do mundo, afirmando que tudo está bem, mas tudo parece estranho. Há um pedido de resgate, mas de outras pessoas que querem se aproveitar do desaparecimento da moça para ganhar dinheiro fácil.

Logo no início da história, há também o desaparecimento de um menino surdo que só é explicado nas últimas páginas do livro. Fatos importantes do enredo são narrados sob a perspectiva de diferentes personagens, o que fornece ao leitor uma visão ampla da história que ali se desenrola, mas em alguns momentos essa fragmentação deixa o romance um pouco confuso. Contudo, nada a ponto de desanimar o leitor a dar continuidade à leitura para desvendar o mistério.

O jovem Cayetano não desiste de encontrar Clara, mas acaba descobrindo o envolvimento de pessoas que nunca imaginou estarem envolvidas em crimes como esse. Quando a encontra, ele tenta provar que ela não está bem, provavelmente está drogada pelos sequestradores que criaram um hospital para realizar experimentos com crianças surdas e com outros tipos de deficiência. Mas surdos são aqueles que não conseguem de fato ouvir suas denúncias e que preferem fingir que tudo está bem.

Os diálogos de Rey Rosa são ágeis, suas descrições reduzidas, e ele é um dos autores realistas que tematizam em seu texto a época atual (os personagens são moradores da Guatemala contemporânea). O livro retrata a grande desigualdade socioeconômica da Guatemala, e como o crime e a violência fazem parte da vida dos personagens. A morte e o desaparecimento de mulheres é abordado no livro, um dos problemas centrais na Guatemala de hoje. Rey Rosa também aborda a Guatemala das culturas maias que sobrevivem com suas próprias leis.

A construção do romance é envolvente e prende a atenção do leitor, que anseia por um desfecho de maior impacto, mas isso fica um pouco a desejar. No entanto, Os Surdos é uma boa narrativa de entretenimento.


Rey Rosa, Rodrigo. Os surdos. São Paulo: Benvirá, 2013. Trad. José Rubens Siqueira. 264 pág.

Rodrigo Rey Rosa nasceu na Guatemala em 1958. Depois de abandonar a faculdade de medicina, mudou-se para Nova York (onde estudou cinema) e logo depois para Tânger, no Marrocos. Entre seus livros, traduzidos para vários idiomas, estão O material humano, publicado pela Benvirá, Severina e La orilla africana. É também tradutor, tendo vertido para o espanhol obras de Paul Bowles, Norman Lewis, Paul Léautaud e François Augiéras.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

TAG: Seleção Literária

Inspirada na resposta da Michelle, decidi escalar também a minha seleção literária, já que estamos em ritmo de Copa do Mundo. Fazer listas e escolher apenas alguns autores para uma leitora que tem um coração bem grande é sempre muito difícil, e certamente essa escalação seria diferente amanhã, mas faz parte do jogo. Decidi fazer dois times, um masculino e outro feminino, para ser mais justa.


Seleção literária (autores)

1. Goleiro - Gabriel Garcia Marquez
Um autor que é seu porto-seguro, para onde você sabe que pode correr quando nada mais te anima a ler. Aquele que sempre te defende das leituras ruins.

2. Zagueiro - Amós Oz
Um autor forte, intenso, que mexeu muito com você.

3. Lateral direito - Junot Díaz
Um autor a quem você resistiu e de quem duvidou que fosse gostar, mas aprovou no final.

4. Lateral esquerdo - James Joyce
Um autor que você nunca leu e que tem fama de ser ‘osso duro de roer’.

5. Volante - Philip Roth
Um autor com excelente qualidade técnica, que coloca cada palavra milimetricamente no lugar.

6. Ala direito - Marcelino Freire
Um autor que arranca com tudo e tem um ritmo insano de narrativa.

7. Ala esquerdo - José Saramago
Um autor cheio de drible, que te enganou direitinho com as reviravoltas da história.

8. Meia-armador - Alessandro Baricco
Um autor que é o craque do time, o camisa 10, que se destaca pela criatividade e pela habilidade.

9. Ponta direita - José Luís Peixoto
Um autor ousado, que te surpreendeu positivamente.

10. Ponta esquerda - Mario Benedetti
Um autor confiável, que está sempre na sua lista de leituras favoritas.

11. Atacante - Valter Hugo Mãe
Seu autor queridinho, o artilheiro da sua estante, aquele que você mais leu na vida.

Seleção literária (autoras)

1. Goleiro - Adélia Prado
Uma autora que é seu porto-seguro, para onde você sabe que pode correr quando nada mais te anima a ler. Aquela que sempre te defende das leituras ruins.

2. Zagueiro - Anne Enright
Uma autora forte, intensa, que mexeu muito com você.

3. Lateral direito - Virginia Woolf
Uma autora a quem você resistiu e de quem duvidou que fosse gostar, mas aprovou no final.

4. Lateral esquerdo - Elfriede Jelinek
Uma autora que você nunca leu e que tem fama de ser ‘osso duro de roer’.

5. Volante - Adriana Lisboa
Uma autora com excelente qualidade técnica, que coloca cada palavra milimetricamente no lugar.

6. Ala direito - Carola Saavedra
Uma autora que arranca com tudo e tem um ritmo insano de narrativa.

7. Ala esquerdo - Andrea Del Fuego
Uma autora cheia de drible, que te enganou direitinho com as reviravoltas da história.

8. Meia-armador - Clarice Lispector
Uma autora que é a craque do time, a camisa 10, que se destaca pela criatividade e pela habilidade.

9. Ponta direita - Tatiana Salem Levy
Uma autora ousada, que te surpreendeu positivamente.

10. Ponta esquerda - Patrícia Reis
Uma autora confiável, que está sempre na sua lista de leituras favoritas.

11. Atacante - Inês Pedrosa
Sua autora queridinha, a artilheira da sua estante, aquela que você mais leu na vida.

E você, qual a sua seleção literária?

terça-feira, 1 de julho de 2014

A vida do livreiro A. J. Fikry


"Você descobre tudo que precisa saber sobre uma pessoa com a resposta desta pergunta: Qual é o seu livro preferido?"

Todo leitor apaixonado há de concordar que "Um lugar não é um lugar de verdade sem uma livraria". E a pequena Alice Island, nos Estados Unidos, passa a ser um lugar que todos gostaríamos de conhecer por conta de uma livraria muito especial, a única da ilha, que tem uma história bonita, como toda livraria que se preze. Assim como a livraria da 84 Charing Cross Road, já consigo imaginar as pessoas visitando Alice Island e procurando por essa pequena livraria (não sei se existe uma livraria mesmo lá como em Charing Cross, ou se tudo é ficção. Mas não quis procurar; prefiro pensar que existe sim e continua lá).

Seu dono, A.J. Fikry, decidiu fundá-la junto com sua esposa, Nicole, que após alguns anos faleceu em um trágico acidente de carro. O livreiro, que tinha um gosto literário apurado e exigente, fica desolado com a perda, tornando-se um homem triste e amargo. Quando a nova representante de uma editora aparece para visitá-lo e lhe mostrar os novos lançamentos da temporada, A.J. não a recebe muito bem, pois está profundamente infeliz com o que restou de sua vida sem a Nicole. A representante, Amelia, ainda tenta lhe falar de um dos seus livros preferidos, fazendo de tudo para que ele pelo menos o lesse, mas não consegue esse espaço.

Após algumas surpresas e confusões na vida de A.J., que envolvem uma edição rara de um dos primeiros livros de Edgar Allan Poe e uma menininha de dois anos chamada Maya, sua vida muda completamente, assim como a vida da comunidade de Alice Island, que passa a frequentar muito mais a livraria. E o que temos diante de nós é uma história sobre pessoas apaixonadas por livros, que sabem da importância da leitura para transformar o mundo ao nosso redor para melhor, e sobre amizades que surgem através dos livros.

A amizade de A.J. com o policial Lambiase, que nunca havia lido muito em sua vida porque na escola sempre lhe diziam que ele não era bom aluno, nos mostra que nem sempre a escola ajuda as pessoas a gostarem de ler, mas que felizmente há muitas pessoas dos livros espalhadas por aí, como a Margueritte de Minhas Tardes com Margueritte, que compartilham a paixão que sentem pela leitura e ajudam a espalhar pelo mundo o amor pelos livros. Porque "Às vezes os livros só nos encontram no momento certo".

A pequena Maya, que cresce na livraria de A.J. e depois se tornará uma escritora, é o exemplo mais bonito do livro de como é em casa que as crianças aprendem o gosto pela leitura, se apresentadas ao universo mágico dos livros por alguém que lhes tem amor. E é o amor de Maya que transforma a vida de A.J. e lhe dá uma nova chance de construir uma família. Sem falar que a pequena Maya, como a Paloma de A elegância do ouriço, é o tipo de filha que todo amante de livros gostaria de ter.

"Lembre-se, Maya: as coisas que nos tocam aos vinte não são necessariamente as que nos tocam aos quarenta, e vice-versa. Isso é verdade para os livros e para a vida".

Para quem procura um livro sobre o amor aos livros na mesma linha (mas não igual, veja bem) de A sociedade literária e a torta de casca de batata, este é um dos que se candidatam a ser um afago no coração. É, sem dúvida, um livro para quem gosta de ler. E uma homenagem bonita às pessoas que dedicam suas vidas trabalhando com livros, quase sempre por puro e verdadeiro amor.

"Lemos para saber que não estamos sós. Lemos porque estamos sós. Lemos e não estamos sós."



"Livrarias atraem o tipo certo de gente. Gente boa, que nem A.J. e a Amelia. E eu gosto de conversar sobre livros com pessoas que gostam de conversar sobre livros. Gosto de papel. Gosto da textura e gosto de sentir um livro no bolso. Gosto do cheiro de livro novo também."

Para ler um trecho do livro, clique aqui.

Zevin, Gabrielle. A vida do livreiro A. J. Fikry. São Paulo: Paralela, 2014. 192 páginas. Tradução: Flávia Yacubian