sexta-feira, 7 de abril de 2017

A Desumanização


“Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos 
do que representamos entre todos.” 

Poético, intenso, imensamente humano. Essas são as palavras que quase sempre uso para falar dos livros de Valter Hugo Mãe. A nova edição de A Desumanização acaba de ler lançada pela Biblioteca Azul e foi um convite a reler esse livro quatro anos depois da minha primeira leitura.

A linguagem poética de Valter Hugo Mãe parece emergir dessa Islândia onde a natureza é tão forte, onde a solidão é tão grande. Sim, este livro fala de solidão, mas não só sobre isso. Fala de amor, de perdas, de luto, de relações familiares, e muitas outras coisas. E contando a história de uma menina que perde a sua irmã gêmea quando criança, nessa Islândia que passamos a imaginar pelas descrições como um lugar talvez difícil de viver (uma representação do mundo de hoje?), aonde as pessoas vão perdendo a sensibilidade para conseguir continuar vivendo diante de ações e sentimentos cada vez mais desumanos. A decadência da família de Halla é contada, e todo o sofrimento que a perda de sua irmã gêmea vai acarretar na vida das personagens é o fio condutor da história. Temos uma criança perdendo sua inocência e lutando para manter sua individualidade, e é bem chocante a figura materna nessa história, que não se conforma com a dor de perder uma filha, e que acaba por se tornar uma pessoa muito cruel pelo sofrimento. A filha que sobrevive será sempre a lembrança da que morreu. A solidão na dor e na ausência, por parte da mãe, e a solidão imensa da filha que fica "órfã" de mãe em vida e que perde a sua metade, sua irmã. 

“Um homem não é independente a menos que tenha a coragem de estar sozinho”. Essa frase de Halldór Laxness é a epígrafe do livro e a inspiração para o nome da personagem principal, Halldora, uma menina de 11 anos. É muito interessante ver a capacidade do autor de dar voz a essa personagem, narrando os sentimentos dessa menina, que ao longo do livro vai se tornando mulher, enfrentando todas as mudanças e descobertas que uma menina entrando na adolescência costuma vivenciar.

Em A Desumanização, a figura paterna ganha força na história como ponto de equilíbrio diante da crueldade da figura materna. É o pai de Halla que traz a poesia e a literatura para a vida da filha e, com isso, ambos ganham uma dose extra de força para sobreviver aos desencantos:

"Os poemas, dizia o meu pai, podem ser completos como muito do tempo e do espaço. Podem ser verdadeiramente lugares dentro dos quais passamos a viver".

"O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia".

Continuo achando que Valter Hugo Mãe é um desses escritores contemporâneos que devem ser lidos, porque em todos os seus livros terminamos a leitura refletindo sobre algo relevante. É sempre difícil terminar de ler um livro dele e dizer alguma coisa imediatamente a respeito, pelo menos é assim que eu me sinto. É como se precisássemos de silêncio para que toda essa realidade dolorosa dos temas que ele aborda pudesse ser absorvida. E se essa não é a literatura que verdadeiramente transforma, que nos coloca no lugar do outro, então eu não sei mais o que é. 

Creio que foi em O Filho de Mil Homens que o autor nos deu uma pequena licença de sonhar, pois nos outros livros, e em A Desumanização não é diferente, por mais doloroso que isso nos seja, (por mais doloroso que seja para o autor também, como ele mesmo afirmou em entrevistas) a vida não perdoa as personagens. E nem todo leitor está preparado para esse tipo de leitura. Espero que você, leitora / leitora, aceite o desafio.

A Desumanização é um desses livros que podem ser lidos e relidos a vida inteira, pelo belíssimo trabalho com a linguagem que o autor desenvolve em suas páginas e, principalmente, pelo retrato da vida e das relações humanas que o olhar atento e sensível de Valter Hugo Mãe sempre consegue registrar.

“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.” 

MÃE, Valter Hugo. A Desumanização. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017. 

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