a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.
o urubu
corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)
deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular
eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.
Ivánova, Adelaide. O martelo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições garupa, 2017.
Adelaide Ivánova nasceu em 1982 na cidade de Recife. Jornalista, poeta, tradutora e fotógrafa, seu trabalho percorre o mundo em publicações impressas e digitais como i-D (UK), Colors (Itália), Te Hufngton Post (EUA), Modo de Usar & Co. (Brasil), Suplemento Pernambuco (Brasil) entre outras. "O Martelo" é seu terceiro livro de poemas.
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