O corpo de uma mulher é encontrado após um telefonema anônimo para a delegacia. Está desfigurado na beira de uma estrada, com os pés amarrados e sinais de violência. O médico legista é chamado para descobrir o que aconteceu e ajudar a polícia a desvendar o caso. É esse médico legista, cujo nome desconhecemos, que contará a história, que é a história desse corpo e o que ele revela, e também a história de outras pessoas, do médico inclusive, e suas vidas envoltas em solidão. Intercalando as vozes narrativas do médico durante a autópsia e dos demais personagens que, aos poucos, vão se entrelaçando, Filipa Melo constrói uma história incrível para nos falar de solidão, de violência e também da morte, destino inevitável de todos nós. O silêncio dos personagens, que não sabem expressar seus sentimentos e sofrem e vivem em solidão e em silêncio, é algo fundamental nessa narrativa. Foi mesmo brilhante a ideia da autora de ter um corpo, já sem vida, a contar esse enredo, a desvendar esses silêncios. É o silêncio do pai de Eduarda, que sem saber como lidar com a perda da mulher, por quem nunca expressou o seu amor, que afasta cada vez mais a filha com a sua dificuldade de afeto e contato físico. É Alda, a mulher de Jacinto, o assassino, que sofre em silêncio a opressão de um casamento frustrado e sem amor, onde o diálogo nunca existiu. Jacinto, que a abandona por alguns meses, movido por uma paixão avassaladora por Eduarda, retorna ao lar depois de tudo, e é aceito sem questionamentos. Miguel, colega de trabalho de Eduarda, que há anos nutre seu amor por ela em silêncio, e o sofrimento que sente ao saber que a perdeu, sem nunca ter lhe confessado seu amor. Mais uma vez são os silêncios que falam mais que os personagens. O médico legista, com toda a descrição dos passos da autópsia que faz no corpo de Eduarda, estabelece uma relação quase poética com esses corpos, com os quais lida diariamente, refletindo sobre a vida mais do que sobre a morte, como se com eles pudesse dialogar.
A força do texto de Filipa impressiona, tanto nas descrições tão precisas da necropsia, quanto na paixão que coloca no trabalho desse médico que, em sua vida pessoal, também sofre de imensa solidão, sem conseguir estabelecer com os outros nenhuma relação. À medida que conhecemos a história de Eduarda, a mulher que foi assassinada poucos dias após dar à luz a um menino em um dos hospitais da cidade, pelo próprio amante e pai da criança, por estar inconformado com o fim do relacionamento, vamos nos envolvendo mais e mais na história. Sim, senhoras e senhores, é desses livros que lemos de uma sentada só. Acho que pode ser considerado um romance policial, porque ficamos grudados no livro até o fim querendo saber a história dessa mulher que perdeu a vida, mas mais importante que o desfecho de uma história policial, onde tudo se resolve e o assassino é preso, aqui o que prevalece é a história de cada uma dessas vidas, seus silêncios e sua solidão.
Gostaria de ver outro livro da Filipa Melo por aí, vamos torcer para que a autora publique mais. Por esse livro de estreia só podemos esperar coisas boas.
MELO, Filipa. Este é o meu corpo. São Paulo: Planeta, 2004.
Filipa Melo nasceu em 1972 na cidade de Silva Porto (atual Cuito), em Angola. Jornalista e escritora, o seu romance "Este é o Meu Corpo" foi acolhido com grande entusiasmo pelos leitores e pela crítica, unânime em considerá-lo uma das revelações literárias da ficção portuguesa no ano de 2001.
3 comentários:
Achei a premissa bem interessante. Essa coisa do corpo contar a história.
Espero ter oportunidade d eler.
Carissa
www.carissavieira.com
Fiquei muito instigada!
Vou procurar!
;)
Paula eu AMEI esse livro. Pena que ao que tudo indica Filipa não escreverá mais livros, pois esse foi fruto de uma aposta. Vamos esperar que ela mude de ideia.
Ladyce
Postar um comentário