sábado, 27 de dezembro de 2014

Nas tuas mãos

"Não sei fingir que amo pouco quando em mim ama tudo" (Vergílio Ferreira)

Nas tuas mãos é um romance sobre três vidas, três gerações diferentes de mulheres cuja intimidade e solidão são descritas por Inês Pedrosa com a delicadeza de uma escrita bem elaborada que comove o leitor e o aproxima dessas personagens, imensamente humanas em suas dores, sentimentos e ilusões. Jenny, Camila e Natália revelam, cada uma de uma forma, aspectos da época em que vivem ao contar a sua própria história; suas vidas também são marcadas pela passagem do tempo e pelas mudanças da sociedade, da mesma forma que foram marcadas por amores e perdas, vivências comuns a todos nós. Assim, o romance é dividido em três partes: o diário de Jenny, o álbum de Camila e as cartas de Natália.

O diário de Jenny começa a ser narrado a partir de 1935. Em uma época em que o único destino para as mulheres era o casamento e a criação dos filhos, Jenny aceita se casar com Antonio nutrindo todas as expectativas que a sociedade da época nela depositava. Mas o casamento acaba por ser um casamento de fachada: Antonio amava Pedro, seu grande amigo, e mesmo sabendo desse amor, pela vergonha de se separar e ter que enfrentar todos os julgamentos que uma mulher divorciada enfrentaria, Jenny aceita em silêncio a solidão que seu casamento de fachada lhe destinava. Conviviam os três em sua grande casa, sem que ninguém jamais desconfiasse que nunca havia se tornado verdadeiramente mulher de Antonio. O tom confessional do diário de Jenny nos comove e aproxima dessa mulher que viveu toda a sua vida em solidão, nutrindo um amor platônico por Antônio. Logo sabemos que Pedro, em uma de suas brigas com Antonio, se relaciona com uma judia francesa e a engravida. Fugindo dos nazistas durante a guerra, Danielle deixa sua filha, Camila, aos cuidados de Jenny e, pouco depois de ser presa, morre no campo de concentração de Dachau. Camila é cuidada por Jenny como uma filha verdadeira e só muito depois passa a saber a história de sua mãe biológica e seu pai. Jenny, vivendo sem ser amada, agarra-se à maternidade como uma forma de não enlouquecer em sua solidão. É para Camila que ela escreve o seu diário, para que a sua filha compreenda melhor as circunstâncias de sua vida.

"Não procures explicação para a minha vida, nem a tomes com pena ou escândalo; quando eu ficar tão velha que pareça louca, lê nestes cadernos que eu fui feliz. Não te preocupes como ou quanto, nem caias na tentação de distinguir amor e paixão: a pouco e pouco, fui vendo que essas divisões são armadilhas que se montam para que o pano caia sobre os nossos olhos e a imortalidade desapareça do nosso horizonte. O amor, Camila, consiste na divina graça de parar o tempo. E nada mais se pode dizer sobre ele" (pp.24-25)

A segunda parte do livro é o álbum de Camila, que gostava de fotografias talvez porque a única coisa que sabia de sua mãe biológica constava em uma fotografia deixada para ela antes de partir. Camila, que foi presa e torturada durante a ditadura, e deixou de sorrir durante muito tempo. As influências do feminismo permeiam todas as ações de Camila, desde a sua postura, sua forma de se vestir, a sua resistência à ditadura da beleza às leituras que fazia (O segundo sexo, da Simone de Beauvoir, e Virginia Woolf, por exemplo). 

Algum tempo depois, Camila conhece Eduardo e eles se apaixonam perdidamente. Mas o destino dessas mulheres parece mesmo ser a solidão, e Camila perde Eduardo de forma trágica. Depois disso, Camila vai trabalhar como correspondente em Moçambique, mais na tentativa de buscar para si mesma a morte do que para recomeçar uma nova vida. Em África conhece Xavier, um militante da Frente de Libertação de Moçambique, um homem que também mudará o seu destino.

"Com Xavier, deixei pura e simplesmente de pensar. Concentrei-me em escutar o sangue do meu corpo até que a sua voz fosse mais poderosa do que o silêncio dos mortos que o secavam. Foi assim que gerei Natália. A milha filha de África, mais do que de Xavier. Desta forma ele a desejaria: herdeira da imensidão mais do que da história trágica de um homem. Para o Xavier, a tragédia era apenas uma prova da veemência da vida." (p. 110)

O romance, de forma geral, é muito rico para pensarmos questões pertinentes ao feminismo, afinal é um livro narrado a partir da perspectiva feminina e fala da vida de três mulheres distintas em épocas diferentes. Em um ano em que mais uma vez a questão do espaço e da igualdade de oportunidades no mundo literário foi bastante discutida, é interessante observar a personagem Josefa Nascimento, uma escritora amiga de Jenny que "publicava romances policiais sob o pseudónimo de Joseph Birth. "Pus meu nome em inglês macho para vender bem", explicava ela, aos poucos a que confiara a sua existência paralela" (p. 33). Josefa, assim como Virginia Woolf, havia sido impedida pelo pai de frequentar a Universidade e só conseguia publicar a sua escrita, bastante feminista, usando um nome masculino.

A solidão de Camila, seu relacionamento com Jenny durante a velhice, a morte de Antonio, a partida de Pedro e a relação mãe e filha com Natália, de quem era muito diferente, são abordados no álbum de Camila, com grande melancolia.

"Pensei que as imagens me poderiam curar, que poderia colar os instantâneos do mundo sobre o sangue do meu coração e fazê-lo parar. Pensei que o amor podia ser domesticado e o lado negro do instinto maternal racionalizado. Pensei demais. Tudo está escrito nos espaços brancos que ficam entre uma palavra e a seguinte. O resto não importa." (pp.140-141)

A terceira e última parte são as cartas de Natália para Jenny, sua avó, de quem era bem mais próxima. Tentando reencontrar seu verdadeiro amor, Natália segue escrevendo para Jenny, mesmo depois da morte da avó. A filha mulata de Camila, que não conheceu o pai e que sofria preconceito por sua cor em Portugal, viaja para África em busca de suas origens. O racismo e o amor entre mulheres também são temas abordados nesse romance tão fascinante e apaixonado de Inês Pedrosa que, principalmente na última parte, observa com o olhar atento a vida das mulheres em Moçambique e a opressão que de formas diferentes as atingem. Um livro sobre mulheres e para (mas não apenas) mulheres, que nos faz pensar sobre feminismo, casamento, maternidade, sexualidade, relações familiares etc e nas histórias que carregamos conosco e que sempre serão parte de nós. E essa (re)leitura, seis anos depois de ter me apaixonado por essa história pela primeira vez, comprovou que Nas tuas mãos continua sendo um dos meus livros preferidos da Inês.


PEDROSA, Inês. Nas tuas mãos. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005. 222 páginas.

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