quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Um quarto para ela


"É um privilégio preparar o lugar 
em que outra pessoa vai dormir." 
Elizabeth Jolley

Antes de começar a falar do enredo desta história, gostaria de falar um pouco de minha história com esse romance. A primeira leitura ocorreu uns três anos atrás, logo que o livro foi lançado no Brasil, quando me deparei com uma capa bonita, com flores singelas, e o título delicado que me fez pensar em uma história bonita de amizade. A leitura, no entanto, não foi tudo o que eu esperava naquele momento, o livro não me falou ao coração, fiquei perturbada com aquela história. Tanto que me desfiz do livro em uma troca no skoob. Se não tivesse sido por obrigação, talvez eu nunca o tivesse relido, mas estou feliz de que isso tenha acontecido. Principalmente porque me mostrou que há um tempo certo para ler cada livro e que o que sentimos em relação a um livro também muda junto conosco.

Um quarto para ela de que fala o título é o quarto que Helen, uma jornalista/escritora de 64 anos, que vive em Melbourne, Austrália, prepara para receber sua amiga Nicola, que está com câncer. Nicola vem de outra cidade (Sidney) para fazer um tratamento e pede para se hospedar na casa da amiga por três semanas. Helen não fazia ideia do estado de Nicola até ela chegar no aeroporto, pois a comunicação que mantinham por telefone e emails ocultava muito da gravidade da situação. Muito debilitada, Nicola chega à casa de Helen e conta dos tratamentos alternativos que vai fazer e que vão “expulsar” o câncer de seu corpo.  Tudo indica que os médicos disseram a Nicola que não há mais nada que a medicina tradicional possa fazer para combater o câncer, além de ajudá-la a controlar a dor que sente. Mas Nicola está em negação e quer acreditar que tratamentos como o de uma clínica clandestina, que na verdade está explorando as pessoas em sofrimento, irá salvá-la.

Helen faz todo o possível para acomodar a amiga, recebendo-a com carinho, trocando as roupas de cama várias vezes durante a noite, cozinhando, limpando, e também está exausta por conta das muitas noites sem dormir. Cuidar de alguém doente é fisicamente e emocionalmente cansativo.  Mas o mais desgastante para Helen tem sido lidar com o sorriso falso de Nicola, a máscara de alegria que a amiga carrega no rosto mesmo nos momentos mais terríveis da doença, fingindo que tudo vai ficar bem, porque não consegue aceitar que a morte está próxima. Porque sente que falhou por não ter tido a vida que a sociedade esperava dela: Nicola não se casou, não teve filhos, foi sempre uma mulher feliz e independente, e que cultivou muitos amigos. E com isso podemos pensar na violência desse discurso que oprime as mulheres durante toda a vida, de que só são completas se casarem, se tiverem filhos, mesmo que tenham construído coisas muito importantes, mesmo que tenham, como Nicola, estabelecido relações de amizade que também são raras.

Entre a angústia de ver a amiga sendo enganada por uma clínica fajuta, que explora pacientes terminais dando-lhes uma falsa esperança, e a dificuldade de lidar com a negação de Nicola, um amigo conta a Helen que talvez Nicola tenha vindo até sua casa porque quer que ela seja a pessoa que lhe diga a verdade e que a ajude a aceitar a doença.

Um quarto para ela é um livro triste, alguns podem considerá-lo "pesado" porque é mesmo difícil falar da proximidade da morte e de uma doença tão sofrida sem o ser. Na casa de Helen, que se enche de alegria e vida com a netinha que lhe visita com frequência, o espaço passa a ser outro, mais pesado e sombrio, espaço de alguém que se despede da vida e de sua própria história. Helen sofre por não poder ajudar mais a amiga, que em sua fase de negação e numa tentativa pouco eficaz de manter sua dignidade diante da dor, pouco pede ajuda. São essas duas forças que estão em jogo na história, assim como acontece em nossas vidas. Enquanto a presença da neta lhe traz nova força e energia, a presença da amiga doente também dá a Helen uma maior consciência do envelhecimento do seu próprio corpo e isso nunca é algo fácil de lidar.

Na primeira leitura que eu fiz, anos atrás, creio que julguei demais a personagem e sua atitude no final perante a amiga doente. Mas hoje, apesar de acreditar que eu faria diferente, se é que podemos prever como nos comportaremos em situações assim, passei a compreender o que Helen nos conta sobre essa história, sobre seus próprios limites, sem tentar julgá-la tanto. Apesar de perceber no livro uma dose de culpa por sua decisão de não cuidar mais da amiga doente.

Apesar de ser um livro triste, é um livro que faz pensar sobre a vida, sobre a morte, para a qual nunca estamos preparados, e sobre a amizade e seu papel fundamental na vida das pessoas, às vezes maior até do que a própria família. E é um livro que assume com coragem o direito que todos temos de respeitar os nossos próprios limites em situações difíceis. E como todo livro que fale sobre a morte, ele nos faz pensar o que faríamos nessa mesma situação, tanto a de Nicola quanto a de Helen, fazendo-nos pensar sobre o valor que temos dado à vida. Nesse sentido, é uma leitura que vale a pena, assim como creio que valeu a pena para a autora, que trouxe muito da sua própria experiência pessoal cuidando de uma amiga com câncer para essa narrativa..

GARNER, Helen. Um quarto para ela. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. 

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