Um caderno e tanto (traduzido em Portugal como O grande caderno) é o primeiro romance de uma trilogia (A prova e A terceira mentira), da escritora húngara Agota Kristof.
Agota Kristof nasceu em 30 de outubro de 1935, na Hungria. Quando o exército russo invadiu a Hungria em novembro de 1956, Kristof deixou o país com seu marido, que havia sido seu professor de história, e sua filha de quatro meses. Eles viajaram para Viena, com a intenção de imigrarem para os Estados Unidos, mas o medo e a incerteza da longa viagem os convenceram a ficar na Suíça. Agota trabalhou em uma fábrica de relógios onde lentamente aprendeu a falar francês, língua que adotou para escrever suas obras.Segundo a autora, ela precisou se apropriar de uma nova linguagem para poder existir no mundo.
Em 1986 publicou Um caderno e tanto (Le Grand Cahier), seu primeiro romance, aos 51 anos. O romance foi um grande sucesso e foi traduzido para quarenta idiomas. Teve várias adaptações para o teatro na Europa e também foi adaptado para o cinema (Le Grand Cahier, The notebook, 2013), filme dirigido por János Szász. Agota viveu em Neuchâtel, na Suíça, até sua morte em 27 de julho de 2011.
Um caderno e tanto conta a história de dois irmãos, gêmeos que, em pleno final da Segunda Guerra Mundial, recebem do pai um caderno no qual devem escrever todos os acontecimentos que vivenciarem e a incumbência de fazer de tudo para sobreviverem. A mãe, sem condição de alimentar e cuidar dos filhos sozinha, pois o marido foi para o exército, leva os filhos para a casa da mãe, com quem não falava há muito tempo. Não sabemos o motivo, provavelmente a suspeita que paira sobre a avó de ter envenenado o avô. Logo percebemos que a avó é uma bruxa, sem demonstrar absolutamente nada de amor pelos netos. Pelo contrário, passa a tratá-los como escravos, quase sem comida e vivendo em condições precárias de limpeza e proteção contra o inverno rigoroso da região. No livro não encontramos nenhuma informação que contextualize o lugar e a época, mas subentende-se que seja o final da Segunda Gerra e o local seja a Hungria, com base na própria experiência da autora.
Longe da mãe e convivendo com uma avó tão má, os gêmeos tornam-se monstros e passam a fazer de tudo: chantagear, mentir, roubar, matar. Passam a realizar exercícios estranhos para aprenderem a suportar a dor, a fome, o frio, a falta de amor ou de qualquer sentimento que os humanize. Eles passam a ser o espelho de tudo o que a guerra faz com os seres humanos, ou de tudo o que estava acontecendo ao seu redor: uma demonstração de que quando o que nos resta é o instinto de sobrevivência, já perdemos toda e qualquer moral.
Os gêmeos passam então a demonstrar uma grande frieza em relação a tudo o que acontece. São capazes de ajudar alguém que precisa, mas não por terem qualquer sentimento pelo outro, afinal não querem nenhuma gratidão, mas oferecem ajuda a pessoas que precisam como a vizinha, uma menina com lábio leporino que mora com a avó, uma velha considerada louca por todos. As duas vivem de esmolas e a menina é molestada sexualmente em vários momentos, inclusive pelo padre da região, que lhe oferece dinheiro para que fique em silêncio. Os gêmeos então chantageiam o padre para conseguir mais dinheiro para a menina durante o inverno, ajudando-a a sobreviver. Há uma lógica estranha no que fazem, como a jovem moça que trabalha na igreja e se oferece para lavar as roupas dos dois, pois andavam muito sujos e sem banho na casa da avó. Por trás desse ato de bondade, há também o assédio que sofriam dessa mesma mulher durante os banhos semanais.
Em outro momento, os soldados na rua arrastam para um trem um grupo de pessoas muito debilitadas, que compreendemos ser judeus. A jovem mulher da igreja humilha um dos prisioneiros oferecendo-lhe um pedaço de pão e depois negando a oferta, divertindo-se com a situação degradante em que estavam. Não sabemos se por esse motivo, ou se por conta dos abusos que sofriam, os gêmeos colocam uma munição que encontraram junto a um cadáver na floresta entre a lenha que levavam para a mulher que lavava suas roupas. Depois de uma grande explosão, ela fica desfigurada e, pouco tempo depois, morre.
Eu diria que o livro é um "caderno do mal", onde tudo de pior e mais grotesco e brutal parece estar presente. Foi impossível não pensar nos relatos dos sobreviventes dos campos de concentração e o que narraram sobre o absurdo da experiência do holocausto. A violência, em todos os sentidos do termo, está presente no texto, na escrita simples de Kristof, que ainda estava aprendendo o francês quando escreveu o romance e se assemelha à escrita das crianças, mas o olhar frio que descreve coisas tão absurdas de forma natural e banal nos estraçalha. De forma semelhante aos relatos dos sobreviventes, esse romance nos faz pensar, citando Primo Levi: é isto um homem?
Slavoj Žižek, quando perguntado sobre um livro que mudou a sua vida, respondeu que foi "Um caderno e tanto". Não foi um livro que mudou a minha vida, nem acho que seja um livro que deva inspirar condutas. Mas certamente foi uma leitura angustiante, inquietante, que provocou muito desconforto. Ainda estou pensando sobre o livro e o que sinto em relação a ele; sobre a brutalidade estranha da escrita simples de Kristof, que nos fala de uma crueldade que nos assombra e choca e, ao mesmo tempo, nos faz seguir lendo até o final. Talvez para sentirmos algum conforto por estarmos longe de tudo isso, em segurança. Talvez para evitar que tudo isso ocorra outra vez. Não é um livro que recomendo a qualquer leitor, pelos temas que aborda, com certeza é um livro para corações e estômagos fortes. Mas foi interessante ler uma escritora húngara que é considerada uma das grandes representantes da literatura francófona.
Para ler uma entrevista em inglês com Agota Kristof, clique aqui.
Para ver o trailer do filme Um caderno e tanto, dirigido por János Szász, clique aqui.
Um comentário:
Definitivamente, não parece um livro para ser lido em qualquer ocasião. Mas me deixou bastante intrigada.
Ótima resenha!
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