"Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, das trocas de pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, sacana
Sou Ana de Amsterdam"
A música de Chico Buarque foi escolhida para nomear o blog de Ana Cássia Rebelo simplesmente por ser uma canção que ela gostava muito. A escrita no blog começou em 2006 como uma forma de lidar com a solidão das noites e também com a depressão. Mãe de três filhos, ao chegar em casa após um dia de trabalho burocrático em Lisboa, depois de colocar as crianças para dormir, Ana escreve. E o blog, pelo tom confessional que adquiriu ao longo do tempo, passou a ser uma espécie de diário, no qual Ana fala de suas angústias, de solidão, de uma tristeza que há muito a acompanha, mas também de família, maternidade, e situações que observa no dia a dia ao ir e voltar para o trabalho. Uma escrita visceral, que aborda assuntos considerados tabus: a sexualidade feminina, menstruação, aborto, as limitações e opressões que o casamento impõe às mulheres e o conflito que as mulheres têm com os seus corpos, entre muitas outras coisas.
Em seus escritos, Ana expõe a condição feminina sem nenhum eufemismo, com uma honestidade que para alguns parecerá uma afronta, para muitas outras apenas uma possibilidade maior de reconhecimento. Em um texto que transita entre a simplicidade de um página de diário (ao qual supostamente não deveríamos ter acesso, e isso torna a leitura ainda mais interessante pelo que de íntimo existe ali) e o lirismo de certos trechos, somos carregados, por vezes cruamente, para o universo de Ana, que é também o universo de muitas mulheres. O que mais nos emociona e atinge neste livro talvez seja justamente isso: a verdade que ele escancara sem nenhum pudor, com uma imensa coragem.
Os textos reunidos no livro Ana de Amsterdam, publicado no Brasil pela Biblioteca Azul, foram organizados e selecionados por João Pedro Jorge, que também escreve o prefácio do livro, e que há muitos anos acompanha a escrita do blog percebendo, desde o início, o grande potencial da escritora que diariamente ali se manifestava. Dispostos por ordem cronológica, de 2006 a 2014, ele mantém as datas de publicação original e constituem, nas palavras do organizador, "um grande solilóquio sobre a solidão". Acho que este livro vai muito além: ele traz para a cena literária uma discussão bem relevante no mundo contemporâneo - ele coloca em cena questões de gênero que precisam ainda ser muito discutidas, principalmente por serem pouco exploradas na literatura. Tudo isso de uma forma clara, honesta e poética. O mais difícil é chegar na última página do diário quando Ana afirma "Morri no princípio de outubro", e ter a certeza de que não queremos dela nos despedir.
"22 de maio de 2007.
Não sei o que fazer com a tristeza quando ela toma conta de mim. Não a convido. Não sei porque vem, derramando tentáculos de dor. Sinto-a fisicamente, como se fosse um bicho, um parasita. Petrifica-me. Torno-me um cristal baço. Uma mancha de bolor. Uma estátua grotesca. Repelente. Torno-me uma fêmea de jacaré ou caimão. Sou uma fêmea de caimão. Sei, com precisão, onde, no meu corpo, se aloja a tristeza. Sinto-a aninhada na traqueia, perto da laringe e da faringe. Nas imediações da glote. Provoca-me náuseas. Vontade de vomitar, também. Hoje, durante o almoço, transformou-se em lágrimas e escorreu sobre a sopa de agriões." (p. 37)
REBELO, Ana Cássia. Ana de Amsterdam. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
Ana Cássia Rebelo nasceu em Moçambique, em 1972. Filha de pai goês e mãe alentejana, foi para Portugal quando tinha cinco anos. Estudou Direito e trabalha atualmente como advogada em um instituto público. Tem três filhos e mora em Lisboa.
*Recebi este livro como cortesia da Biblioteca Azul.
3 comentários:
Pipa, minha leitura foi muito como a sua.
E escrita da Ana me pegou e soou muito familiar. Dura, mas também muito bonita.
Gostei muito da escrita dela, Aline. E também da resenha que você escreveu :)
beijo,
Pipa
Antes de ler a resenha de vcs, Pipa e a Aline, eu já queria, agora necessito!
Xerinhos
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