A escritora estadunidense Lily King buscou inspiração na vida de uma das mais famosas antropólogas da história para criar o romance Euforia. Após ler a biografia de Margaret Mead (1901-1978), a autora usou algumas informações reais para elaborar as personagens (ficcionais) do seu romance, ambientado na Nova Guiné, na década de 1930. Sem dúvida uma forma de homenagem, já que, sabendo que o livro é um romance, ficamos curiosos para conhecer um pouco mais da vida dessa mulher que se destacou em sua carreira, teve uma vida interessante e serviu de inspiração para esta história de amor.
Mas quem foi Margaret Mead?
Margaret Mead teve grande importância na divulgação da antropologia enquanto ciência. Formada em psicologia pela Barnard e doutora pela Universidade de Columbia, Mead acreditava que a antropologia era uma nova forma de compreender o comportamento humano, algo indispensável para nos prepararmos para o futuro. Foi a primeira antropóloga a analisar o desenvolvimento humano através de uma perspectiva intercultural. Em seus estudos na Nova Guiné, ela demonstrou que os papeis de gênero diferem de uma sociedade para outra, dependendo também dos aspectos culturais (e não apenas do biológico, como se acreditava na época). Casou-se três vezes: o primeiro casamento, com Luther Sheeleigh Cressman; o segundo, com o antropólogo Reo Fortune; e o terceiro com o antropólogo Gregory Bateson, com quem teve uma filha. As mulheres altamente educadas da sua família, como a avó e a mãe, tiveram grande influência na formação de Mead.
Na biblioteca do congresso dos Estados Unidos, que reúne hoje os mais de 5000 itens que constituem a sua produção, é possível encontrar uma carta de Mead para a sua avó logo após o primeiro casamento, em 1923, afirmando a sua decisão de manter o seu nome de solteira. Atitude que aliás manteve durante os três casamentos e que justificou com base no que sua mãe lhe ensinou: as mulheres deveriam manter a sua identidade e não se anular, o que já revela bastante de sua personalidade. Margaret Mead faleceu em 1978, em Nova Iorque.
“Never doubt that a small group of thoughtful,
committed citizens can change the world.”
Margaret Mead
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Importante lembrar que o romance não é uma biografia, apenas teve Margaret Mead e seus dois últimos maridos como fonte de inspiração, visto que os três eram antropólogos e poderiam ter convivido em determinado momento de suas vidas. O mote perfeito para a criação do romance: um triângulo amoroso intenso e perigoso.
O romance narra a história de Nell Stone, uma importante antropóloga que, após escrever um livro e obter grande sucesso com uma pesquisa que causou polêmica, decide voltar ao local de suas pesquisas para desenvolver uma nova investigação. Assim, ela retorna para a Nova Guiné com o marido, Fen, também antropólogo, embora seu nome seja sempre ofuscado pelo talento da esposa. O sucesso de Nell, e o fato de seu trabalho ser muito mais reconhecido e aclamado que o dele, provoca grande desconforto em Fen, que representa o papel de homem que não se conforma com a conquista do espaço social e da igualdade pelas mulheres. Com isso, ele deixa de compartilhar informações com ela sobre suas investigações, criando um ambiente de tensão e também de violência, que percebemos já desde as primeiras páginas. Nesse sentido, o romance é interessante para pensarmos a construção social dos papéis de gênero - e como a violência é usada para manter a ordem patriarcal sempre que uma mulher consegue superar e ter mais destaque que os homens - o que é bastante atual e algo que certamente a autora encontrou nos próprios trabalhos de Margaret Mead.
Há mais de um ano vivendo entre diferentes tribos e em condições não tão favoráveis, Nell está bastante doente. Mesmo contra a vontade, o marido, Fen, acaba por aceitar voltar para o local de pesquisas inicial, onde a mulher poderia ter um pouco mais de conforto. É nesse momento que eles encontram um jovem antropólogo, Andrew Bankson, e uma amizade se estabelece entre os três, já que são praticamente os únicos ocidentais naquela região.
Os cuidados e a atenção de Andrew, assim como a sintonia intelectual que ele estabelece com Nell, tornam cada dia mais evidente que Fen não nutre pela esposa tanto amor quanto diz, mas um sentimento de posse e, claro, de ciúmes. Mas não é só para Nell que Andrew se faz necessário: Fen, sem querer compartilhar seus resultados com a esposa com medo de que ela conquiste ainda mais sucesso que ele, passa a ter em Andrew um apoio para conversar e refletir sobre sua pesquisa, mesmo percebendo que há um interesse latente entre Andrew e Nell. Tudo isso ocorre entre tribos com culturas e línguas bastante diferentes, todas inventadas, como a autora nos informa depois, mas pautadas em características verdadeiras de alguns locais, o que serve muito para discutir nossa visão eurocêntrica de mundo, e a importância de respeitar as diferenças, o espaço e a cultura do outro, assim como ter uma ideia do dia a dia de um antropólogo em trabalho de campo.
As atividades dos três antropólogos ilustram um pouco a era de ouro da antropologia moderna, mostrando os desafios e os encantos dessa profissão que, conforme as próprias personagens mostram no romance, ainda estava se firmando como ciência e foi por conta dos trabalhos de pesquisadores como Margaret Mead, por exemplo, que conquistou seu espaço, e se tornou mais popular, não que isso não tenha ocorrido sem muita polêmica. A paixão de Nell e Andrew pela antropologia e a sintonia entre os dois pode ser percebida nas conversas e no compromisso com o lado humano dessa atividade que os dois personagens demonstram. Quando Andrew lhe pergunta qual a sua parte preferida na profissão, Nell responde:
" - Aquele momento, cerca de dois meses depois do início, quando você acha que finalmente entendeu um pouco o lugar onde está. De repente, ele parece estar ao seu alcance. É uma ilusão, só faz oito semanas que você chegou, e é seguida pelo desespero completo de se perguntar se um dia vai entender alguma coisa. Mas, naquele momento, o lugar parece inteiramente seu.
É a mais breve e mais pura euforia." (p. 51)
E é justamente o sentimento de euforia que encanta Andrew, pois ele encontra em Nell uma pesquisadora apaixonada pelo seu trabalho, ciente da responsabilidade que ele implica, já que certos resultados podem ser apropriados de forma inadequada e para algo muito distante do que se tinha em mente, além de ser uma grande pesquisadora, disposta a compartilhar seu conhecimento com ele.
As anotações de campo, parte indispensável do trabalho de observação dos antropólogos ao se aproximar de uma outra cultura e relatar diariamente, por escrito, suas reflexões, estão presentes na narrativa que intercala a narração de Andrew com anotações dos próprios cadernos de Nell, complementando dessa forma o cenário que compõe o livro.
Lily King criou uma história de amor envolvente, bem possível de ocorrer ainda nos dias de hoje, que nos faz pensar sobre a destruição que uma briga de egos pode gerar em um relacionamento, e isso não apenas nos relacionamentos amorosos, e no quanto as mulheres continuam sendo punidas por suas conquistas, seu talento, sua inteligência. Ou simplesmente por dizer não.
KING, Lily. Euforia. São Paulo: Globo Livros, 2016. Tradução: Adriana Lisboa
Informações sobre Margaret Mead - The institute for intercultural studies e The Library of Congress
*Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros
Um comentário:
Deu muita vontade de ler, ótima resenha :)
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