quarta-feira, 5 de março de 2014

Jesus Cristo bebia cerveja

A expectativa em relação a este livro não podia ser maior. Foram muitos os comentários que ouvi sobre o escritor nos últimos meses e estava ansiosa para lê-lo, ainda mais depois de ler a enfática recomendação do Valter Hugo Mãe, um dos meus escritores preferidos, sobre o Afonso Cruz. Minha irmã trouxe este livro de presente para mim lá de Portugal, porque, infelizmente, muitos dos livros do Afonso Cruz ainda não foram publicados no Brasil (e eu não sei o que as editoras estão esperando, com tanta gente ansiosa para ler este escritor). Ontem finalmente aproveitei o feriado carnavalesco para conhecer sua escrita.
A primeira coisa que chama a atenção no Afonso Cruz é certamente os títulos dos livros, que são sempre inusitados e deixam os leitores curiosos e cheios de expectativas. Afonso Cruz definitivamente sabe dar título aos livros. E ficamos ainda mais encantados com ele depois que mergulhamos na leitura e vemos que tudo se encaixa e faz sentido.


A história de Jesus Cristo bebia cerveja se passa em uma pequena aldeia alentejana e conta a vida de Rosa, uma menina que foi abandonada pela mãe ainda criança e cujo pai, desiludido com o abandono da esposa e deprimido por ter perdido a perna em um acidente no trabalho "pegou numa corda e pendurou-se numa figueira. Foi o mais estranho fruto daquela árvore". Sozinha, Rosa passa a morar com a avó, já bem envelhecida e doente, em uma casa pequena na aldeia. Vivem uma vida difícil e sem muitas condições, porque são pobres, e, com a doença da avó, já não tem como cultivar a terra para ganhar algum dinheiro. Rosa é uma menina melancólica e sonhadora, que adora ler histórias de cowboys. A leitura é uma de suas poucas distrações e seu livro favorito é "A morte não ouve o pianista".

"Rosa costuma ler um pouco antes de dormir, até os olhos se apagarem. Lê westerns na maior parte das vezes, lê policiais nas restantes. [...] Para Rosa, o cansaço é o livro mais eficaz, mas quando não consegue dormir um bom western faz o efeito". [pág. 70]

O pastor Ari é o único amigo de Rosa, são amigos desde que eram crianças. Seu sonho sempre foi trabalhar no teatro como ator, e o mais próximo que chegou de realizá-lo foi trabalhar aos sábados na sala de teatro da aldeia como lanterninha durante a projeção de filmes, algo de que muito se orgulha. Com o tempo, eles começam a namorar. Ari se apaixonou completamente por Rosa, mas era um homem simples, do campo, que não sabia muito o que dizer para declarar seu amor, exceto tocá-la. 

"Lembra-te de que quando Deus fecha uma porta abre-nos um livro" - dedicatória do autor para a esposa, contida em um livro de western que o pastor Ari dá de presente a Rosa

Para ganhar dinheiro, Rosa vai trabalhar na casa de um senhor rico da cidade durante a semana e deixa a avó aos cuidados da vizinha. Mas, com o passar do tempo, se sentindo infeliz nesse ambiente, e vendo que a avó não está sendo bem cuidada, deixa o trabalho e volta a morar em casa com a avó, Antónia, que está cada dia mais doente, já não enxerga nem escuta direito, e tem lapsos de memória. A avó sempre teve o sonho de conhecer a Terra Santa, Jerusalém, e Rosa se entristece por saber que Antónia nunca será capaz de realizar esse sonho. Até o dia em que conhece o Professor Borja, um homem das ciências, que "pena a solidão da razão - o último lugar deserto da Terra" [pág. 27]. O professor, um senhor de setenta e sete anos, teve um casamento sem amor, mas que lhe deu uma filha, a quem muito amava. No entanto, sua filha morre aos cinco anos em um acidente doméstico e a esposa, sofrendo com a perda, escolhe ter o mesmo fim e se suicida. O professor Borja sente um grande vazio e, assim como Rosa e outros personagens dessa história, sofre de uma grande solidão.

"De cada vez que deixamos de ser percebidos, morremos. Quando somos enterrados deixamos de ser percebidos por toda a gente, mas quando os outros já não olham para nós, ficamos condenados para um número limitado de pessoas, a uma morte em tudo idêntica à outra. A nossa morte não acontece quando somos enterrados, acontece continuamente: os dentes caem, os joelhos solidificam, a pele engelha-se, os amigos partem. Tudo isso é morte. O momento final é apenas isso, um momento". [pág 89]

Quando conhece Rosa e sua avó, o professor Borja se apaixona perdidamente por Rosa, apesar desta ser muito mais jovem. E ao ver a tristeza de Rosa por não poder realizar o sonho da avó, o professor sugere que transformem a Aldeia em Jerusalém, numa espécie de teatro, apenas para realizar esse sonho de Antónia. Vários outros personagens contribuirão para essa encenação, alguns tocados pelo gesto da neta de tentar dar alguma alegria para a avó doente, outros tentando desmascarar a farsa de Rosa e do Professor. Farsa esta que inclui uma encenação da última ceia, mas nela, segundo o professor e suas teorias, Jesus Cristo bebia cerveja.

"Borja está entusiasmado e nem sente a mentira. Na verdade, acha que todas as geografias se sobrepõem. O sagrado está em todo o lado. Não tanto pelo valor intrínseco, mas pelo valor que lhe damos. Se uma aldeia do Alentejo pode ser Jerusalém, é porque é Jerusalém". [pág. 206]

Esta é uma história sobre o amor, sobre a solidão, sobre a capacidade de transformação do ser humano. Os personagens são bem construídos e tudo se encaixa nessa narrativa elaborada por um poeta-artesão, que está atento a cada detalhe na construção dessa história que é, em si mesma, um objeto a ser contemplado. Os capítulos são curtos, e fluem muito bem durante a leitura, que tem um tom por vezes melancólico, por vezes irônico. Há uma certa dose de humor que diverte, mas não sem deixar de nos emocionar. Foi uma surpresa encontrar no fundo do livro, como um daqueles encartes de publicidade que contém o primeiro capítulo, o livro que tantas vezes Rosa menciona na história: "A morte não ouve o pianista", também de autoria de Afonso Cruz. Foi muito interessante, original e criativa essa abordagem, e diria até homenagem ao poder de contar histórias, a possibilidade de conhecer a história dentro da história que acabamos de ler. Afonso Cruz é, sem sombra de dúvidas, um autor original que vale a pena conhecer e de quem eu pretendo ler outros livros.

"Rosa recorda os tempos em que ouvia muitas histórias, contadas pelo avô, pelo pai, pela avó. Sempre com a lareira acesa, pois uma lareira queima duas coisas: lenha e histórias". [pág.72]

Afonso Cruz. Jesus Cristo bebia cerveja. Portugal: Editora Objectiva, 2012. 248 páginas.

Afonso Cruz nasceu em 1971, em Figueira da Foz, Portugal, e estudou nas Belas Artes de Lisboa, no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e na António Arroio. É escritor, músico, cineasta e ilustrador. Escreveu oito livros: A Carne de Deus (Bertrand), Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal - Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco 2010), Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho - Prémio Literário Maria Rosa Colaço 2009), A Contradição Humana (Caminho - Prémio Autores 2011 SPA/RTP), A Boneca de Kokoschka (Quetzal - Prémio da União Europeia para a Literatura), O Pintor Debaixo do Lava-Loiças (Caminho), Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria (Alfaguara) e Jesus Cristo Bebia Cerveja (Alfaguara - Prémio Time Out 2012 - Melhor Livro do Ano). Ilustrou, desde 2007, cerca de trinta livros para crianças, trabalhando com autores como José Jorge Letria, António Torrado, Alice Vieira. Também tem publicado ilustrações em revistas, capas de livros e publicidade. (Informações retiradas do blog do Afonso Cruz)

4 comentários:

Unknown disse...

Paula, Parabéns! como sempre suas resenhas me deixam ansiosas por ler a obra, imediatamente encomendei o livro. Uma pena ser importado e ter que esperar tanto.Abraço!

Pipa disse...

Obrigada, Keila! :)

Espero que você goste do livro!
Realmente, além de ficar bem mais caro, o pior de tudo é o tempo de espera de 13 semanas até o livro chegar. Espero que logo uma editora brasileira decida publicá-lo, para que possamos ler mais coisas do Afonso Cruz, já tenho vários outros dele na minha lista! :)

beijo,
Pipa

Anônimo disse...

Paula, estou louca pra ler esse autor, estou esperando ser lançado aqui, mas estou prestes a comprar a edição portuguesa mesmo. =)
Beijo!

Michelle disse...

Paula,
É verdade! O Afonso Cruz sabe mesmo escolher títulos. O único livro do autor que li era infantil e me apaixonei. Esse que você resenhou eu não conhecia, mas nem preciso dizer que fiquei louca para ler, né?
Muito obrigada por me apresentar a esse livro!
bjo