quinta-feira, 20 de março de 2014

O lugar sem limites


“As coisas que acabam dão paz e as coisas que não mudam começam a chegar ao fim, estão sempre chegando ao fim. O terrível é a esperança”. (pág.154)

José Donoso [1924-1996] é um dos grandes nomes da literatura chilena e um dos romancistas mais relevantes do chamado “boom” literário latino-americano dos anos 1960 e 1970. Em O lugar sem limites, Donoso nos apresenta uma protagonista marcante, a travesti Manuela. É através da história trágica de Manuela, sempre marcada por sua condição, que Donoso faz uma crítica ao machismo e a essa sociedade tão devota do patriarcado.

El Olivo é um vilarejo perdido no interior do Chile, que tem um pouco das cidades imaginárias latino-americanas. Um lugar que viveu na expectativa de crescer e se desenvolver, mas que com o tempo só encontrou a decadência. Um vilarejo em ruínas, cujo patriarca é Don Alejo, um homem que manipula todos ao seu redor para atingir seus objetivos, e que é o dono de quase todas as terras e casas da região. Para os habitantes de El Olivo “Don Alejo é único. É como Deus” [pág.86].

Quando Manuela chegou ao vilarejo para fazer uma apresentação no prostíbulo comandado pela Japonesa Grande, não imaginou que ali criaria raízes. Por conta de uma aposta com Don Alejo, a Japonesa Grande tem relações sexuais com Manuela e com isso passa a ser proprietária da casa, que antes era alugada de Don Alejo. Mas dessa relação nasce uma filha, a japonesita, que depois da morte da mãe, passa a dirigir o prostíbulo junto com Manuela, que por conta da aposta passou também a ser sócia do empreendimento.

A relação entre Manuela e a Japonesita é algo que chama a atenção pelos questionamentos que provoca nas duas personagens em sua identificação com o gênero. A Japonesita chama Manuela de papai, enquanto Manuela preferia ser chamada de mamãe.  A filha espera que o pai lhe proteja quando homens como Pancho Veja chegam e acabam com a ordem que existe na casa, muitas vezes usando de violência. Mas Manuela, sentindo-se velha e frágil em sua condição de mulher, pois é assim que se vê,  sabe que não tem como se defender ou defender a filha.

Quando a Japonesita começava a falar desse jeito, Manuela tinha vontade de uivar, porque era como se sua filha o estivesse afogando com palavras, cercando-o lentamente com sua voz uniforme, com aquela cantilena. Maldito povoado! Maldita menininha! Como pudera imaginar que só porque a Japonesa Grande o tornara proprietário e sócio da casa na famosa aposta que graças a ele ela ganhara de Don Alejo, as coisas iam mudar e sua vida ia melhorar.” [pág.70]

- Aonde você vai, papai?
- Está falando com quem?
- Não se faça de bobo.
- Quem é você para me controlar?
- Sua filha.
Manuela viu que a Japonesita falou com maldade, para estragar tudo e para refrescar a memória dos outros. Mas olhou para Pancho e, juntos, soltaram gargalhadas que quase apagaram as lamparinas.
-Claro, sou sua mãe.
- Não, meu pai.”
 [pág.146]

A vida de Manuela, tão marcada pela discriminação, por abusos e insultos, é um elemento importante criado por Donoso para criticar o machismo da sociedade, que não sabe lidar com a diferença e às vezes teme sentir desejo por ela. Nesse trecho, Pancho Vega, o valentão do vilarejo, chega ao prostíbulo e exige que Manuela dance para ele. Sua reação, inicialmente de desejo, é reprimido e expresso em seguida pela violência.

A dança de Manuela o golpeia e ele quisera agarrá-la assim, assim, até quebrá-la, aquele corpo que começa a exalar seu odor agitando-se em seus braços e eu com Manuela que se agita, apertando para que não se mexa tanto, para que fique sossegada, apertando-a, até que olhe para mim com aqueles olhos de redoma aterrorizados e enfiando minhas mãos em suas vísceras viscosas e quentes para brincar com elas, deixá-la ali estendida, inofensiva, morta: uma coisa”. [pág.144]

Um dia desses vai acontecer alguma coisa com ele, sempre digo isso para mim mesma, mas ele sempre volta. Uns três ou quatro dias depois. Às vezes fica uma semana inteira andando por aí pelos puteiros de outros povoados onde o conhecem, de rainha, diz ele, e chega aqui de volta com um olho roxo ou duas costelas quebradas quando os homens o espancam por ser veado quando estão bêbados. Não tenho por que me preocupar. Ele tem sete vidas como os gatos.” [pág. 156]


A narrativa de Donoso é simples, fluida, porém muito forte por questionar preconceitos tão enraizados não apenas na sociedade chilena, e intercala passado e presente para construir a história desse vilarejo que está predestinado a chegar ao fim, mas que, apesar das dificuldades, resiste na esperança de dias melhores. 

DONOSO, José. O lugar sem limites. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 160pp. Tradução: Heloisa Jahn.

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