domingo, 9 de fevereiro de 2014

Todos os dias




Uma casa habitada por uma família, suas dores, saudades, silêncios, ausências e também por um segredo. O cotidiano simples de acordar, sair para o trabalho, cuidar da casa, voltar no final do dia, sentar-se junto para o jantar, é narrado através da prosa lírica e delicada de Jorge Reis-Sá transformando esse livro em uma pequena obra prima. O cotidiano de um casal já aposentado, seus dois filhos, a avó já em idade avançada, e um neto que preenche essa casa com alguma alegria constituem essa casa, que é ela própria o centro de toda a história. É nela que os melhores dias, e também as piores dores ocorreram nessa família.

Justina e Antônio trabalharam durante a vida toda, cuidaram dos filhos, desejaram para eles o melhor futuro. Augusto, o mais velho, acabou com o sonho do pai de ter um filho doutor e bem sucedido quando decidiu deixar a faculdade porque queria ser escritor. Passou a viver em casa com a mãe, distante do restante da família porque à noite escrevia seu livro de forma obsessiva, livro que viria a ser publicado depois, dando orgulho aos pais que não o compreendiam direito. O filho mais novo, Fernando, tentava sempre fazer o que achava que os pais esperavam dele, tirar notas boas, trabalhar, casar, ter um filho, mas viveu sempre sob a sombra do irmão, a quem ao mesmo tempo admirava e amava, mas que também invejava.

Havia ainda a mãe de Antônio, que morava com eles e cuidava da cozinha, e que aceitava Justina como filha. E houve também uma tragédia, que marcou essa família para sempre, assim como um segredo, que só ficamos sabendo no final. A família nunca se recuperou da morte tão prematura de Augusto, cuja ausência afetou a vida de todos. Jorge Reis-Sá escreve com tal intensidade que sentimos a dor desses pais ao perderem seu filho:

"Mas não foi pelas vezes que ouvi o sino, enquanto o meu filho jazia na cama com a sua pele já fria, que o senti mais alto. Foi pela dor lancinante quando tocou para mim. Não era sicrano ou beltrano quem morrera, como dizia minha mãe. Era o meu filho. E, se para as outras pessoas era apenas uma morte a mais, para mim era a única. A única morte que me poderia um dia fazer entender o sino como se fosse uma fala antiga que me entrou quando nasci". [pág.119]

A morte da avó, logo em seguida, traz a dor da perda materna para a história, um vazio que nunca mais é preenchido e com o qual os personagens, que poderiam ser nós mesmos, tem que aprender a conviver e lidar, por mais doloroso que seja. Há o passar do tempo, inevitável, deixando marcas na pele e no coração dos homens. E há a capacidade de ver, através das rugas e do corpo cansado, a beleza verdadeira que construiu o relacionamento entre o casal, em uma das descrições de um olhar apaixonado mais singelas que já vi.

Em Todos os dias, a narrativa é composta por muitas vozes, que se entrelaçam todo o tempo, todos os dias, recriando a convivência em família. A cada momento o autor nos apresenta a perspectiva de um dos membros da família, no passado e no presente, recompondo sua trajetória única, e ao mesmo tempo também nossa. Este livro é daqueles que encontram na simplicidade da história uma forma muito especial de comover o leitor, pois nos identificamos com os sentimentos de cada personagem, e as relações familiares sempre foram (e sempre serão) palco rico e fértil para a literatura. Mas o que mais me encantou foi a forma verdadeira com que esses personagens foram apresentados, tão humanos em suas dores e suas falhas que conseguimos deles nos aproximar e partilhar dessas memórias, desse cotidiano simples em que a mãe acorda cedo todos os dias para alimentar as galinhas no quintal, em que o pai sai para trabalhar e só retorna no final do dia, sofrendo muito quando é convidado a se aposentar;  e também mais tarde, quando o pai tenta se fazer útil novamente naquela casa vazia e ao mesmo tempo cheia de silêncios e ausências, difíceis de aceitar. A rotina desse casal que envelheceu juntos e que consegue reviver as lembranças de seus próprios filhos no sorriso e na alegria do neto, numa tentativa constante de lembrar e esquecer alcança fundo nosso coração.

Poderia dizer que este livro é sobre o tempo que passa e que a ninguém perdoa; poderia dizer que é um livro sobre a morte e como lidamos com as ausências, com a culpa que carregamos do que foi ou não feito ou dito. Mas prefiro dizer que este é um livro sobre a vida, sobre os rituais cotidianos que compõem a vida, a família. "Porque é de gestos iguais que se fazem os dias"  e "porque somos, na passagem das horas, no olhar de quem amamos, todas as resignações, todos os dias que já fomos". [pág.188]


Jorge Reis-Sá. Todos os dias. São Paulo: Record, 2007. 224 páginas.

Um comentário:

Unknown disse...

Nossa, eu preciso ler esse livro! Que resenha sensacional! Que delicia :) Beijo, linda!