“Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis
centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela,
graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo
você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio
devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher”.
Assim começa essa história de amor, quase um Romeu e Julieta,
com a diferença de que aqui o tempo e a saúde foram os vilões. Relendo
esse livro me dei conta de duas coisas: que há mesmo um tempo certo para cada
livro, porque não tinha gostado tanto dele quanto gostei agora; e que ainda há
amores que duram para sempre, mesmo nos tempos de hoje.
André Gorz é um dos mais importantes intelectuais da
atualidade, foi filósofo e jornalista, publicou dezenas de livros, centenas de
artigos e ensaios. Nasceu em Viena, na Áustria, em 1923. Foi levado para a
Suíça pela mãe em 1938, que temia o exército nazista. O pai havia sido preso
pelas tropas nazistas e ela não queria que o mesmo ocorresse com o filho por
conta de sua ascendência judaica. André Gorz, que na verdade é um pseudônimo,
com o qual ficou mundialmente famoso (seu nome verdadeiro é Gerhard Horst),
permaneceu na Suíça até o final da guerra, estudou engenharia química, e se
tornou um dos principais conhecedores da obra de Jean-Paul Sartre.
Paralelamente à atividade de jornalista, desenvolveu uma intensa atividade
teórica e política.
Carta a D. foi seu último livro, escrito em homenagem a sua
esposa Dorine, com quem viveu por quase sessenta anos. Acho que podemos
considerá-lo uma carta de amor e também uma carta de despedida. Nele, André
Gorz faz uma análise de toda sua vida, relembrando os momentos mais difíceis e
importantes de sua carreira apenas para constatar que nada do que fez ou
produziu teria sido possível sem sua esposa, e que talvez ele não tenha dito
isso com todas as letras em seus trabalhos. Ficamos sabendo como os dois se
conheceram, de como ele se sentia em relação ao mundo e à sua família (“Minha
família se tornara tão estrangeira para mim quanto meu próprio país” pág. 13)
ressaltando essa relação de amor e de companheirismo que se estabeleceu entre
os dois no decorrer de suas vidas. E ficamos sabendo também que Dorine teve um
papel fundamental em toda a produção teórica/filosófica/política desse autor,
tendo o encorajado durante toda sua vida:
“Você dizia que tinha se unido a alguém que não podia viver
sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas
a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua
mesmo depois de largar o lápis, e pode inesperadamente se apossar dele por
completo, bem no meio de uma refeição ou uma conversa. “Se eu pelo menos
soubesse o que se passa na sua cabeça”, você dizia ás vezes, diante de meus
longos devaneios em silêncio. Mas você também sabia disso porque você mesma já
tinha passado por isso: um fluxo de palavras procurando o arranjo mais
cristalino; fiapos de frases continuamente remanejados; começos de ideias que
ameaçavam desvanecer se uma senha ou símbolo não conseguisse fixá-las na memória.
Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você. “Então escreva!”. (página
21)
Chamou minha atenção que Dorine quis aprender alemão e Gorz
lhe disse “Não quero que você aprenda
nenhuma palavra dessa língua, nunca mais vou falar alemão”, demonstrando o
peso de um passado que transformou o alemão numa língua relacionada à
morte, ao ódio, à tristeza, ao que não se quer lembrar. No entanto, as últimas palavras da
carta são em alemão, como se diante da ideia da morte de sua amada, uma dor
tão grande de suportar, só mesmo a língua
materna (ou a tristeza a ela relacionada) pudesse descrever: Die Welt is
leer, Ich will nicht leben mehr (O mundo está vazio, não quero mais viver).
“Eu não posso me imaginar escrevendo se você não mais
existir. Você é o essencial sem o qual todo o resto, importante apenas porque
você existe, perderá o sentido e a importância. Disse-lhe isso na dedicatória
do meu último escrito.” (Pág. 51)
Terminei de ler o livro chorando, porque não há dor maior do
que perder quem se ama e o relato foi realmente emocionante. E fiquei pensando
se Dorine chegou a ler essa carta que ele escreveu. Espero que ela tenha lido. O posfácio informa que Gorz
e Dorine se suicidaram juntos em setembro de 2007, mas o último parágrafo me
fez pensar que é possível outra interpretação, pois não temos um depoimento de
Dorine: talvez ela tenha falecido, pois estava muito doente, e, diante da visão
de perdê-la, ele tenha se suicidado para que os dois pudessem seguir juntos,
porque ele não saberia mais viver no mundo sem ela. Feito Romeu e Julieta. Se eles
decidiram juntos em vida ou se ele decidiu isso depois de sua morte, pouco importa.
O que fica claro nesse livro, nessa carta, é a história de um amor que existiu
durante toda uma vida.
André Gorz. Carta a D. : história de um amor. Cosac Naify
Portátil: São Paulo, 2012.
Um comentário:
Li este livro e achei encantador e ao mesmo tempo muito triste. Linda a tua resenha! Um abração!,
Ilmara
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