"Hoje, o matinho ainda cresce nas rachaduras do cimento. Encontra espaço, finca raiz. Outro dia, o síndico mandou uma circular dizendo que era preciso cortar a árvore que fica na trente do prédio, já que a Prefeitura não faz nada. É um ficus muito grande, as raízes quebraram a calçada. Pediu minha contribuição, minha assinatura, dinheiro.
A árvore já estrangulou o meio-fio e agora avança na direção das grades da portaria. As raízes se infiltraram nas tubulações, o que explica o gosto de terra na água da torneira. Quem plantou? Ninguém lembra. O síndico disse que se não tomarmos providências um idoso pode morrer. A dona Vera do 701 já tropeçou na calçada estufada. Podia ter quebrado o cotovelo!
Não dei minha contribuição.
Acho bonito quando as árvores fazem isso. Durante anos as raízes vão crescendo quietinhas debaixo dos nossos pés, crescem, endurecem, se esparramam - e vão forçando a superíficie da calçada.
Eu queria ter um ouvido aguçado para ouvir o som da raiz desgastando o cimento, empurrando, ganhando espaço. O atrito escuro, os miasmas. E um dia, enfim, a luz.
Queria viver muitos séculos, para que a vitória parecesse ter a rapidez dum murro. Queria ver os garis recolhendo os cacos depois de meses de reclamação no telefone tal, abaixo-assinados, visitas à Secretaria de Parques e Jardins. As autoridades não se mexem nesta cidade!
Eu queria ser a árvore.
Onde tivesse espaço."
HERINGER, Victor. O amor dos homens avulsos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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