Neste romance, Valter Hugo Mãe nos presenteia com a história de duas empregadas domésticas em Portugal, Maria da Graça e Quitéria. Duas mulheres trabalhadoras unidas pela cumplicidade da amizade e de sua ocupação. Maria da Graça, casada com Augusto, um pescador, é quem sustenta a casa com seu trabalho como “mulher-a-dias”, como se diz em Portugal. Augusto passa a maior parte do ano no mar, e mesmo quando retorna não contribui muito com as despesas da casa. Maria da Graça trabalha na casa do senhor Ferreira, um homem rico e aposentado, que abusa sexualmente de Maria da Graça em sua condição de empregada doméstica, se apropriando do seu corpo como parte do serviço pelo qual paga. O sofrimento de Maria da Graça pode ser percebido pelos pesadelos que ela descreve ao longo da narrativa, da tristeza crescente que passa a demonstrar, mesmo depois da morte do senhor Ferreira, e consequente fim dos abusos. Uma amostra de que o sofrimento causado pela violência desses assédios pode durar muito mais tempo do que se imagina.
O peso das expectativas geralmente atribuídas às mulheres, como esse ideal de amor romântico que é reproduzido desde a infância com os contos de fadas em que todos são “felizes para sempre”, faz com que Maria da Graça comece a achar que está apaixonada pelo patrão. Essa imagem de uma mulher que é abusada sexualmente em seu ambiente de trabalho e assume um discurso totalmente naturalizante da violência, interpretando-a como amor revela o perigo desses discursos. Felizmente na história, a amiga, Quitéria, aparece como uma espécie de alter ego e diz a Maria da Graça o que nós temos vontade de dizer: Maria da Graça, "és muito nova para te deixares convencer que o amor é sermos violadas” (p.20).
No romance, temos também a história de Andriy, um jovem que deixa seus pais na Ucrânia em crise, e migra para Portugal em busca de trabalho, como muitos fizeram na época da grande fome ucraniana. Andriy passa a se relacionar com Quitéria, ao mesmo tempo em que sente grande solidão por estar longe da família, com a qual se preocupa, e um tanto isolado, pois não fala português e em Portugal, concentrando-se unicamente no trabalho, passa a constatar quão violenta é a condição desumanizadora do trabalho, que desconsidera os sentimentos dos homens e passa a tratá-los como máquinas. Vemos com o relacionamento de Andriy e Quitéria também uma inversão dos papeis tradicionais de gênero, uma vez que é ele quem demonstra maior sensibilidade diante do relacionamento dos dois, mostrando como os homens também sofrem em uma sociedade patriarcal, que associa o masculino à virilidade, agressividade e também ausência de emoções.
O apocalipse dos trabalhadores é um romance que fala sobre a condição dos trabalhadores e trabalhadoras no mundo contemporâneo; é também um romance que fala sobre a bonita relação de amizade que surge nas circunstâncias mais inesperadas, assim como aborda a violência a que as mulheres estão constantemente submetidas, seja no ambiente doméstico, seja em seu local de trabalho. Acho que ele fala também sobre o problema dessa concepção idealizada de amor, o que somos levados a acreditar que é amor, e que, na verdade, é o que pode nos destruir, como acontece com uma das personagens. Levada a acreditar que a felicidade é “morrer de amor”, passa a considerar uma violência como amor, e põe fim à sua vida para alcançar esse ideal. E talvez seja isso o grande mérito do livro, fazer-nos refletir sobre aquilo que nesse mundo tão absurdo temos chamado de amor.
A nova edição pela Biblioteca Azul, atual editora de Valter Hugo Mãe no Brasil, conta com ilustrações exclusivas de Eduardo Berliner e prefácio de Ignácio de Loyola Brandão.
MÃE, Valter Hugo. O apocalipse dos trabalhadores. São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
2 comentários:
Realmente Valter Hugo Mãe é maravilhoso!
Pipa, admiro muito sua generosidade em partilhar conosco suas leituras.
Um grande carinho
Tania
Feliz de saber que você acompanha o blog, querida Tita.
Compartilhamos esse amor pelo Valter Hugo Mãe :)
obrigada pelo carinho.
um beijo,
Pipa
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