O africano é o primeiro livro que leio do escritor Jean-Marie Gustave Le Clézio e o primeiro pensamento ao concluir a leitura foi aquele de “quero ler mais coisas desse autor”. Pelo seu tom intimista e autobiográfico, O africano encanta pela simplicidade da narrativa, tão poética e cheia de sentimento que é difícil não se encantar pelo livro, afinal ele trata da relação pai e filho e isso, acredito, alcança todos nós.
"Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e de seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas ideias, provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós.
Por muito tempo sonhei que minha mãe era negra. Inventei-me uma história, um passado, para escapar da realidade em meu retorno da África, neste país, nesta cidade onde eu não conhecia ninguém, onde me tornara um estrangeiro. Depois descobri, quando meu pai, na idade da aposentadoria, retornou para viver conosco na França, que o Africano era ele. Foi difícil admitir isso. Tive de voltar atrás, de recomeçar, de tentar compreender. Em memória disso escrevi este pequeno livro".
O trecho acima é a primeira página do livro e já nos situa no que é, em essência, esta história: as lembranças de um filho que percorre as memórias que tem de seu pai e de alguns momentos de sua vida, assim como da vida da família, que foram determinantes em sua formação. O livro pode ser visto como uma homenagem do autor à sua infância na África colonial e ao seu pai, um médico que passou grande parte da vida no país, e longe da própria família que permaneceu na França, para exercer a medicina e ajudar as pessoas.
Após uma primeira infância na França, onde viveu com a mãe e os avós, já que o pai não podia visitá-los por conta da guerra, aos oito anos o autor viaja até a África ocidental, na Nigéria e finalmente conhece seu pai. São os anos que viveu em África que ele tem como os melhores de sua vida.
Relembrando como foi descobrir a liberdade de viver em África, tão diferente da vida que levava no apartamento burguês dos avós na França, percebemos o olhar ainda idealizado que o autor tem da vida na África, mas também a diferença do olhar entre ele e seu irmão do olhar das demais crianças da região. Enquanto as crianças conviviam com os insetos, respeitando-os como parte da natureza que os constituíam, os dois recém-chegados da França tinham como brincadeira destruir as casas de cupins que encontravam, sem nenhum motivo, apenas movidos por uma raiva incontida que levava à destruição. Uma analogia da própria colonização, que nos permite uma reflexão sobre a visão eurocêntrica do mundo, que ainda hoje prevalece. Afinal quem são os selvagens? Questionamentos assim perpassam o texto de forma sutil e certamente nos levam a refletir sobre a apropriação cultural decorrente da colonização, sobre a violência e o descaso com a vida dos africanos em diversos conflitos que destruíram inúmeras vidas e sobre o nosso próprio olhar em relação ao outro, ao que difere de nós.
Apesar dos elementos de denúncia social, o livro é uma espécie de tentativa de um filho de se reaproximar de seu pai, já que na época, quando o conheceu, o pai era um homem amargurado, rígido, calado, que exigia um comportamento disciplinado dos filhos e que os anos que passou distante da mulher e das crianças haviam transformado em um estranho. Na época, ainda criança, o autor não compreendia o que havia se passado com o pai ali em todos aqueles anos, sendo o único médico de uma enorme região, e completamente sem estrutura para exercer a sua profissão como desejava, mas ainda assim fazendo de tudo para respeitar as pessoas daquele lugar, tão diferente do seu, e também a sua cultura. Uma experiência que certamente o transformou em um africano, que o ensinou muito sobre a vida, a ponto de sempre ter desejado para lá voltar.
Tempos depois, e percorrendo os objetos, as fotografias e as histórias dos quais só muito depois tomou conhecimento, o filho então tenta reencontrar, por meio das memórias que escreve nesse pequeno grande livro, o pai que por muito tempo foi para ele um estrangeiro, percebendo o quanto de sua experiência de vida e do que ele foi existe em si mesmo. Entre as muitas coisas bonitas que habitam este livro (fotografias tiradas pelo próprio pai do autor e outros trechos belos, carregados de sentimento), escolhi encerrar este texto com um dos trechos de que mais gostei e que diz muito da história, que merece ser lida e compartilhada:
“Os africanos costumam dizer que não é do dia em que saem do ventre materno que as pessoas nascem, mas sim do lugar e do instante em que elas são concebidas” (p.83)
LE CLÉZIO, J.M.G. O africano. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Jean-Marie Gustave Le Clézio, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2008, nasceu em 1940, em Nice, na França, mas suas origens também nos levam à ilha Maurício, onde nasceram seus pais. Aos oito anos, mudou-se com a família para a Nigéria, onde seu pai trabalhou como médico durante a Segunda Guerra Mundial. Formou-se em Letras e, em 1963, aos 23 anos de idade, ganhou o prêmio literário Renaudot pelo livro Le Procès-verbal. É autor de contos, novelas, romances, ensaios e livros de literatura infanto-juvenil.
Um comentário:
Não conhecia esse título, achei interessante a resenha. Vou colocar na minha sacola do Kindle... Ah, Cosac... Já deixou saudades...
Abraço!
Alexandre Melo
doqueeuleio.com.br
Postar um comentário