A amiga genial é o primeiro volume da tetralogia criada por Elena Ferrante, narra a infância e a adolescência de duas personagens, as protagonistas da história: Elena e Lila. A partir do prólogo, tomamos consciência do mote do romance: Lila desapareceu, aos sessenta e seis anos, sem deixar vestígios; Elena, na tentativa de não deixar que ela desapareça por completo, decide escrever a sua história, que é a história de ambas e da amizade que se estabeleceu entre as duas desde a infância. A escrita é, portanto, uma forma de eternizar o que a vida não foi capaz de manter, uma forma de garantir a permanência das pessoas e das lembranças construídas a partir de suas vivências.
Mas a infância dessas personagens nada tem de comum. Lila é uma menina levada e destemida, por vezes cruel, em quem Elena se espelha. A relação entre as duas é uma mistura de competição, inveja e admiração. “Nosso mundo era assim, cheio de palavras que matam” (p. 25) é o que nos conta Elena. E a força das palavras de Lila era o que enfeitiçava Elena. A violência está presente na infância das duas como algo inerente à vida ou ao próprio ambiente em que vivem. São meninas pobres, em um bairro em que, para sobreviver, é preciso aprender a reagir.
“Não tenho saudade de nossa infância cheia de violência” (p.25).
Apesar de franzina, Lila se destaca das demais pela inteligência, sendo a primeira da turma quase sempre, uma autodidata que lia escondido de todos, e por ser uma pessoa sempre em busca de um desafio. Algo que fica evidente na trama é como a escola por vezes também é um ambiente hostil e propício a humilhações quando a competição é estimulada pelos professores e diretores. Quando as meninas se destacam mais que os meninos na escola, são vítimas de mais violência para impedir qualquer desestruturação da ordem patriarcal que claramente governa a sociedade italiana descrita no romance. Muitas delas são impedidas de continuar os estudos muito mais por serem mulheres do que pela condição social da família, como podemos observar no diálogo entre Rino, irmão de Lila, e seu pai:
“Se você me pagar, eu me encarrego dos estudos dela”, dizia Rino.
“Estudar: Pra quê? Por acaso eu estudei?”
“Não”
“Então por que sua irmã, que é mulher, precisa estudar?”
A escrita honesta de Ferrante, ao mesmo tempo em que nos choca pela violência que se apresenta assim sem nenhum comedimento, também nos encanta à medida que a história se desenvolve e essas personagens incríveis e complexas vão se apresentando. Quando nos damos conta estamos absolutamente envolvidos nessa narrativa que mostra um pouco do cenário italiano pós-guerra, onde as mulheres sofrem bastante pela submissão que a sociedade lhes impõem, silenciando suas vontades para assumirem o papel de esposas e mães, mas onde também há meninas como Lila e Elena, que sonham com uma vida de glamour, em que possam escrever, estudar, se apaixonar de verdade.
A trajetória dessas duas amigas desde a infância até a adolescência é contada através dos olhos de Elena, a amiga genial, a única que consegue continuar estudando. As duas tem uma relação de encantamento com os livros, mas Lila parece silenciar essa relação com o tempo para atingir outros objetivos. A eterna admiração que Elena sente por Lila, que mesmo sem estudar continua sendo brilhante, é um sentimento complexo e talvez o que mais encante na escrita de Ferrante: ela consegue retratar de forma honesta personagens humanas, verdadeiras, com todas as suas contradições. Mais importante ainda é que é a história de uma amizade entre mulheres, destacando todas as transformações que enfrentam em suas vidas, todos os obstáculos que tem que enfrentar (a violência inclusive), a partir da perspectiva feminina.
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que, indo contra a maré atual entre os escritores, quer permanecer fora dos holofotes: nada se sabe sobre sua vida pessoal, ela se recusa a divulgar fotografias e diz acreditar que os livros, uma vez escritos, não precisam de seus autores. Se eles têm algo a dizer, mais cedo ou mais tarde encontrarão os leitores.
Enquanto leitora, só tenho a dizer que estou feliz que este livro tenha me encontrado e que a obra dessa escritora finalmente comece a chegar ao público brasileiro – que certamente vai ficar como estou agora: ansiosa pelos volumes seguintes dessa série Napolitana que promete muitas emoções.
FERRANTE, Elena. A amiga genial. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015. 336 páginas. Tradução: Maurício Santana Dias.
Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.
10 comentários:
Pipa, que resenha incrível <3
O que mais me chamou a atenção nesse livro foi justamente a forma como ela trata a infância e a adolescência, sem romantização e até de uma forma bem violenta. O contexto social também é incrível.
Já quero a resenha do segundo volume hahahaha
Beijos!!!
Obrigada, Tati! Aguardando seu vídeo sobre ele também!
=]
beijo,
Pipa
Já soube que esse primeiro livro acaba num suspense danado. Por sua resenha dá para perceber que o livro é incrível, mas acho que vou esperar lançarem os próximos para começar esse primeiro. Não sei... O que acha? Tem previsão dos outros?
Beijo!
Duda, eu amei esse livro e acho que vale a pena ler, logo teremos o segundo volume (a editora já confirmou que já está sendo traduzido). Não acredito que com essa expectativa toda dos leitores eles vão demorar a publicar os outros. Eu estou curiosíssima! :)
beijo!
Eita que dá vontade de começar a ler hoje...me desanimei quando soube que se trata de uma série, mas pelo que você fala parece aquele tipo de livros que os personagens de acompanham...e esses são os livros mais deliciosos.
Beijo grande, Pipa!
Está decidido! Vou ler! Sofreremos juntas a espera pelo próximo. Risos.
estou a ler este livro e adorar. adorei a sua resenha. :)
Adorei o livro , ainda mais pq sou casada c um napolitano e esse livro retrata bem a vida dos meia sogros e entendo um pouco mais a cultura napolitana! Já estou lendo o segundo em italiano !! Suspense !!!
Li e discutimos no #leiamulheres. Foi delicioso!
Aguardo com muita ansiedade o segundo :)
Bjks mil
www.blogdaclauo.com
Oi Pipa,
Gostei muito da resenha. Acabei de ler este livro e também estou ansiosa pelos próximos da série.
Bj.
Cláudia Matta
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