segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sejamos otimistas



Já é quase regra: todo ano, em algum sábado de poucas notícias, surge aquele mesmo texto, só que repaginado, com previsões catastróficas sobre o mundo da literatura e dos livros. “Ninguém mais lê” ou “Brasileiro lê pouco”, ou ainda a dramática afirmação “os livros digitais acabarão com os livros em papel”. Um discurso tão negativo que em nada acrescenta ao mundo. Ou será que alguém acha mesmo que ler uma reportagem de jornal fará os leitores imediatamente se darem conta de que precisam pegar um livro na estante como pegamos um remédio indicado pelo médico?

No romance O filho de mil homens, um dos meus livros preferidos, o escritor português Valter Hugo Mãe brinca com esse fato de a literatura ser um remédio:

Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, pois fique sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro. O Camilo ria-se. Perguntava o que era colesterol, e o velho Alfredo dizia-lhe ser uma coisa de adulto que o esperaria se não lesse livros e ficasse burro. Por causa disso, quando lia, o pequeno Camilo sentia se a tomar conta do corpo, como a limpar-se de coisas abstratas que o poderiam abater muito concretamente. Quando percebeu o jogo, o Camilo disse ao avô que havia de se notar na casa, a quem não lesse livros caía-lhe o teto em cima de podre. O velho Alfredo riu-se muito e respondeu: um bom livro, tem de ser um bom livro. Um bom livro em favor de um corpo sem problemas de colesterol e de uma casa com teto seguro. Parecia uma ideia com muita justiça (2012, p. 69).

Acredito sim que literatura é remédio. Daqueles bem poderosos, capazes de curar tristezas, de mudar (mas também de reiterar) opiniões, de proporcionar reflexões sobre universos distintos dos nossos, de nos fazer pensar. Mas a literatura é um remédio tão específico e de difícil categorização que possui uma forma de indicação própria. Não é algo que se possa obrigar ninguém a gostar verdadeiramente.

A tradição clássica de ensino de literatura nas escolas tem demonstrado isso, pena que nem todo mundo consegue perceber. Não adianta obrigar alguém a ler, e com isso não quero dizer que o ensino de literatura deva deixar de existir, porque ele é indispensável. Com isso quero mostrar que a literatura é um remédio que precisamos desejar, e o papel da escola e também da família deve ser o de despertar o desejo de ler, fomentar o debate (e estimular a tolerância e a capacidade de dialogar, tão necessárias nos dias de hoje), além de alimentar o encanto inicial que move e forma leitores, fazendo com que eles desejem a cada livro lido um desafio maior, uma aventura diferente a ser percorrida. E o exemplo é a melhor forma de fazer isso. Como posso convencer alguém que a leitura é fascinante se eu mesmo não sou capaz de demonstrar a minha paixão pela leitura?

Cada vez que leio um desses textos com previsões apocalípticas, eu me pergunto por onde o autor tem andado que não tem visto a quantidade de jovens que está lendo, participando de clubes de leitura, escrevendo em blogs e gravando vídeos em vlogs, trocando livros para ter a chance de ler mais e driblar o alto preço cobrado nas livrarias, organizando maratonas literárias nas férias, ansiosos por compartilhar a paixão e o encanto de suas descobertas com outros leitores. Para mim é evidente que tem mais gente lendo, basta olhar ao redor. Com certeza ainda não é o suficiente, dada a extensão do nosso país, aos problemas que ainda existem, sem contar o fato de que só recentemente alguns milhões de brasileiros deixaram de viver abaixo da linha da pobreza. Se não havia dinheiro para comer, quem dirá para comprar livros. Tudo isso precisa ser pensado quando lemos sobre essas estatísticas. E não podemos nos esquecer de que leva tempo para transformá-las, mas isso não é algo impossível de acontecer.

Diante de textos tão desanimadores, eu recomendo acessar as novas redes sociais, algumas delas exclusivas para leitores, como o Skoob, que já tem mais de dois milhões de usuários no Brasil, sem falar nas redes internacionais, como o Goodreads, para ficar um pouco mais otimista e também para se animar a ler um livro pois, como disse Daniel Pennac no livro Como um romance, “Não há melhor maneira de abrir o apetite de um leitor do que lhe dar a farejar uma orgia de leitura” (Pennac, 2008, p. 112). É por isso mesmo que precisamos de professores, pais e bibliotecários apaixonados pela leitura para que possam partilhar a sua própria felicidade de ler e com isso despertar nos jovens o desejo de ler tão essencial na formação de um leitor.

Nós, leitores, podemos fazer o que mais amamos, como tenho visto com cada vez mais intensidade nas redes sociais e ao meu redor nesses últimos anos: podemos partilhar a nossa felicidade de ler, falando daqueles livros que nos tocaram a alma pois esse encantamento costuma ser contagioso e pode ajudar muito mais a mudar as estatísticas pessimistas em relação à leitura, e em proporções muito maiores, do que textos apocalípticos e negativos sobre o assunto. 

Entre os leitores deste blog que hoje já se tornaram amigos e que compartilham comigo o mesmo apreço que tenho pela leitura e seu poder transformador, sei que seguem espalhando esse encantamento contagioso e positivo sobre os livros que os encontraram e emocionaram, indicando um livro a um amigo, presenteando alguém com um livro especial, mantendo vivo esse círculo de leitores que desde sempre permitiu a construção de novos laços de amizade e de afeto. É nisso que procuro pensar quando escuto alguém dizer que ninguém mais gosta de ler. Imagino todos os livros que cruzam o país todos os dias nas muitas trocas realizadas no skoob, por exemplo. Ou nos muitos livros que são esquecidos propositalmente em algum banco de ônibus ou em um banco de praça em alguma cidade do país em iniciativas lindas como o bookcrossing. E não deixo de pensar que seria maravilhoso se em um desses dias de tédio, os jornalistas dos textos apocalípticos decidissem escrever não esse tipo de texto negativo, nem muito menos uma resenha de um lançamento do mês sobre o qual são obrigados a escrever, mas sobre um livro que de fato marcou a sua vida. Talvez assim eles conseguissem se lembrar da felicidade de ler; talvez assim eles conseguissem ver que tem muito mais gente lendo. Acredite:




8 comentários:

Eduarda Sampaio disse...

Lindo texto, Paula! ^_^
Concordo em gênero, número e grau com o que você disse. E ainda acrescento mais um argumento dos pós-apocalípticos, que é o seguinte: "e os jovens, quando leem, só leem sub-literatura". Não tenho paciência para isso, até porque é lendo histórias bobinhas que ganhamos confiança para ler coisas mais complicadas.
Em geral, estou sentindo essa negatividade em vários outros campos. Está cada vez mais difícil fazer algo, gostar de algo ou estudar algo sem que alguém te coloque para baixo. É a crise econômica, é a falta de mercado... Enfim, precisamos de mais otimismo!
Beijo!

Tati disse...

Pipa, minha linda, muitos aplausos para esse texto! Muitos mesmo!
Penso muito nisso e principalmente quem são os beneficiários desse discurso. Será que difundir essa afirmação não é desincentivar ainda mais a leitura? Vi na FLIP uma mesa com um matemático e ele disse que o seu livro era muito bem vendido no Brasil, se não me engano só ficava atrás dos EUA, onde foi lançado originalmente (o livro dele foi traduzido para mais de 20 países) .
Incomoda também o discurso "o brasileiro não lê"! Como se em todos os outros países do mundo muitos leitores brotassem do chão todos os dias e o Brasil, coitado, esse "país de iletrados", como já li em muitos lugares por aí.
Fico especialmente triste quando vejo outros leitores reproduzindo esse discurso. Parece que existem pessoas que gostam de ocupar um lugar no Olimpo da literatura e se consideram seres superiores por causa disso. Admitir que muita gente está lendo seria perder um pouco desse lugar.
Vamos ser otimistas sim! Tem muita gente lendo e vai ter muito mais!
Beijo enorme!

Michelle disse...

Concordo 100% com o seu texto, Paula.
Não sei em que bolha essas pessoas vivem para dizer que "ninguém mais lê". É ser muito preguiçoso e não olhar para os lados. Talvez o real significado dessa frase seja "ninguém mais lê os livros X", aqueles que nos enfiam goela abaixo na escola e nos traumatizam para sempre. Forçar uma literatura específica, desprezar os outros estilos e repetir o discurso apocalíptico ajuda em quê?
A Tati também tocou num ponto importante: aqueles que reproduzem esse blablabla se sentem acima dos meros mortais que não leem e não querem ser nivelados com eles.
O que eu percebo é que tem gente lendo, sim. E mais do que eu costumava ver. Em formatos diferentes e estilos variados. Só não vê isso quem não quer.
Beijo!

Maira disse...

Pipa, acho que você foi certeira. E acho também a imprensa bastante preguiçosa nesse sentido. Preferem sempre abraçar a senso comum que olhar de forma mais atenta e crítica, e vá lá, com o coração menos cheio de desesperança.
Sim, também acho que tem mais gente lendo. E acho que isso não tem mais volta e só tende a crecer. Essa nova geração já é totalmente diferente da nossa, e o próprio mercado é um sinal de como as coisas mudaram. Porque mudaram rápido demais inclusive, e tá todo mundo tentando entender como fazer. É engraçado, é lindo e é revigorante.
Adorei seu texto e seu desabafo.
Um beijo enorme!

Pipa disse...

Verdade, Duda, esse discurso negativo anda se espalhando e acho que isso é péssimo.
E deveríamos estar preocupados em como despertar o interesse dos jovens por outros livros cada vez mais desafiadores em vez de ficar reclamando do que eles estão lendo.
beijo!

Concordo com você, Tati, esse discurso do brasileiro não lê só favorece alguns mesmo. Mas que bom que eu vejo vocês falando de livros e de leitura de forma mais positiva :)
Tem mais gente lendo e vai ter muito mais! :)
beijo!

Michelle, acho que quem escreve esses textos é que lê pouco ou quase nada, e convive muito pouco com gente que gosta de ler. Na minha opinião, o livro digital só tem feito as pessoas lerem mais, e não vejo ninguém abandonando o livro em papel por conta disso :)

beijo pra vocês meninas, obrigada pelos comentários :)

Juliana Brina disse...

Que texto lindo, Paula!

Acho que há muito elitismo no discurso de que 'ninguém mais lê'. O Brasil está em 27º lugar entre os países em que mais se lê, de acordo com o número de horas lidas per capita: http://www.theparisreview.org/blog/wp-content/uploads/2013/07/Hours-Spent-Reading-Around-the-World.jpg

O Reino Unido, apesar de formar um dos maiores mercados editoriais, está em 26º lugar, e a Alemanha, em 22º lugar. Esse infográfico ajuda a quebrarmos muito preconceitos...

Beijos,
Ju

Juliana Brina disse...

Que texto lindo, Paula!

Acho que há muito elitismo no discurso de que 'ninguém mais lê'. O Brasil está em 27º lugar entre os países em que mais se lê, de acordo com o número de horas lidas per capita: http://www.theparisreview.org/blog/wp-content/uploads/2013/07/Hours-Spent-Reading-Around-the-World.jpg

O Reino Unido, apesar de formar um dos maiores mercados editoriais, está em 26º lugar, e a Alemanha, em 22º lugar. Esse infográfico ajuda a quebrarmos muito preconceitos...

Beijos,
Ju

Pipa disse...

Que maravilha, Ju! Não sabia desse infográfico! Muito obrigada :)

beijo,
Pipa