Narrado em primeira pessoa, Sangue no olho conta a história de Lucina, uma escritora chilena que vive em Nova York, onde faz doutorado. Prestes a se
mudar para o apartamento que seu namorado, Ignacio, acaba de comprar, surge a enfermidade, que pode deixá-la cega para sempre. Mesmo com todo acompanhamento médico, há sangue em seu olho e nem o oftalmologista sabe se ela perderá a visão para sempre ou se é algo temporário. Enquanto
aguarda o período necessário para a cirurgia que confirmará de certa forma o
seu destino, Lucina ou Lina, precisa aprender a estar cega, a conhecer o mundo
ao seu redor de uma nova forma. Nesse sentido, a narrativa se desenvolve de dentro dessa cegueira.
Além
do medo que está sentindo diante dessa nova realidade, Lina passa a se sentir
insegura em seu relacionamento com Ignacio, julgando que será para ele um peso,
alguém de quem a partir de agora dependerá muito mais. Em crise, ela vai para o
Chile por uns dias reencontrar sua família, uma família típica de classe média,
que também tem seus problemas. O pai é um pouco ausente, a mãe é uma médica que
trabalha demais e se sente culpada, sufocando seus filhos com tanto cuidado. Lina
diz para a mãe: “tua ajuda me invalida”, em uma das partes mais bonitas do
romance, quando a mãe percebe que não pode fazer tudo pela filha, quando se dá
conta de que ela precisa, por conta própria, aprender novamente o mundo. Um dos
irmãos abandona tudo isso e se afasta, para poder cuidar de sua própria vida. O
outro vive de uma maneira irresponsável, apesar de estar mais presente. Voltar
para a casa sem a visão é o que permite que Lina possa compreender melhor
aqueles que ela ama.
Em
sua nova condição, Lucina ouve audiobooks o tempo inteiro, na tentativa de
suprir a falta que a leitura e as palavras lhe fazem. Por conta dos procedimentos
médicos, suspendeu temporariamente a sua pesquisa de doutoramento, apesar de
manter contato frequente com sua orientadora, aquela que conhecendo bem seu
lado de escritora e amante das palavras, está sempre incentivando a aluna e
amiga a não deixar de contar histórias e a brincar com as palavras simplesmente
por não poder vê-las. A memória então passa a ser um elemento chave na vida de
Lucina, que consegue guiar seu namorado enquanto ele dirige pelas ruas do Chile
baseando-se unicamente na memória afetiva de sua cidade, onde os barulhos,
cheiros e sensações ajudam a mostrar o caminho.
É
particularmente interessante o fato de a pesquisa de Lucina, ou Lina, ser sobre
a doença na literatura latino-americana. Nessa autoficção, a personagem
diz: “me dei conta de que eu era como a antropóloga que se apaixona por seu
objeto de estudo. Um amor desmedido, arriscado, porque o objeto tinha se
apropriado de mim, se voltado contra mim” (p. 161). O teor autobiográfico do livro reside não só no mesmo nome da autora e personagem, na vivência entre essas duas cidades (Santiago e Nova York) que a autora compartilha com a personagem e na mesma pesquisa que desenvolvem, mas na experiência de um problema de visão que a autora teve (já curado), não tão grave quanto o da personagem do romance. Esse devaneio entre realidade e ficção, que se misturam e alguns pontos, mas que não se igualam, é o que torna o romance extremamente interessante.
Nesse
ensaio sobre a cegueira, pois é uma história sobre a doença, a perda de um
sentido possibilita a redescoberta de outros, proporciona uma compreensão
maior daqueles que nos cercam e acaba por ser um ensaio sobre o amor, pois nessa
travessia pela escuridão a protagonista parece questionar-se o tempo inteiro
sobre os limites do amor, tanto de seus familiares quanto do seu namorado. Até que ponto você vai por mim, para me guiar na
escuridão? Em Sangue no olho, é o homem que tem que apresentar uma prova de amor, rompendo com a ideia de que só as mulheres se sacrificam nas relações afetivas. O que me incomodou um pouco no romance foi justamente essa ideia de que amar um cego seria um sacrifício, assim como a vitimização da personagem em alguns momentos diante da enfermidade. Apesar dessa impressão (que é totalmente pessoal), posso dizer que é uma escrita intensa, por vezes angustiante, por vezes poética, que conquista a atenção do leitor até a última página.
Vale a pena destacar a beleza da edição da Cosac
Naify que, de forma sutil, conseguiu captar plasticamente o mote do romance com
as páginas que começam na cor branca e vão escurecendo à medida que a história
(e a cegueira) da personagem se desenvolvem, aproximando o leitor da angústia
da personagem ao perder a visão.
Lina Meruane nasceu em Santiago do Chile, em
1970. Ao lado de Alejandro Zambra e Alejandra Costamagna, e é hoje um dos
principais nomes da literatura contemporânea de seu país. Atualmente é
professora de cultura latino-americana na Universidade de Nova York.
MERUANE, Lina. Sangue no olho. São Paulo: Cosac Naify, 2015. Tradução de Josely Vianna Baptista. 192 páginas.
Para ler uma entrevista com a Lina Meruane, clique aqui.
5 comentários:
parece bom, ótima resenha
Obrigada, Nina! Seja bem vinda :)
beijo,
Pipa
Obrigada, Gilberto! Gostei do livro e a edição da Cosac é realmente linda.
beijo,
Pipa
Paula, esse livro está me fascinando. A cada resenha que leio minha vontade de lê-lo aumenta. Estou só esperando terminar Stoner...
Adorei seu texto.
beijo grande e saudades <3
Espero que goste do livro, Maira!
Um beijo,
Pipa
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