domingo, 8 de março de 2015

O desgoverno dos sonhos

o desgoverno dos sonhos
(um poema de Valter Hugo Mãe)

já não te aguardo,
adio-me

sobre o veludo da tua
morte o atrito do
corpo é a dolente barca onde
o dia quase não passa, pelo mar dentro
o céu a estalar

se à morte tudo sobeja,
sobejo de sentir o outono

o livro oblitera as
palavras e silencia-me.
deitar-me-ei, o sol a pesar o
meu corpo e tu, todo o
tamanho do mundo, calado, morto,
vasta extensão
que aprenderei a percorrer

existe uma arritmia tênue
no coração de quem perdeu
o amor de outrem, um coração tênue que se sobrepõe ao que
já se tem

eu deixei a luz em
dias como este, conheço o
olhar sem imagens dentro,
sei do frio quando lento
se caminha a rua, quando nada
difere do que a alma
sente, esse fim do
amor na respiração que recua

e sei o porquê desta ansiedade ao
virar a página
ainda que ninguém seja passível de se
esconder entre as
folhas de um livro

a morte não me
assusta, hei-de voar-lhe
no céu da boca
assim que se prepare para
me engolir

e resgato os pássaros
enquanto as árvores
chilreiam e defino o vento pela
sua mecânica

critico-os, de que adianta ser pássaro
quando não se tira os olhos do chão

por isso persigo o pôr do sol,
janelas abertas, e
vacilo

lágrima, pavio de
água que acabo de
acender, arde, onde
por fim parto

já tu me esperas,
abrevias-me


MÃE, Valter Hugo. Contabilidade. Portugal: Editora Objectiva, 2010. pp. 268-270

Nenhum comentário: