“Tu, leitor, vem cá, caminha
comigo na berma desta estrada” – é a primeira frase de um dos contos deste
livro e resume um pouco a sensação que temos ao navegar por essas páginas:
somos guiados pelas palavras precisas e poéticas de Dulce Maria Cardoso. Palavras que formam um conjunto de histórias que retratam a alma humana, o que há de obscuro, cruel
e complexo em seus sentimentos. São histórias de amor, mas não aquelas triviais
e com final feliz. São aquelas histórias que doem, inquietam, incomodam. A respiração fica
suspensa por alguns instantes depois de cada um dos 12 contos aqui presentes, e precisamos de
um tempo para recuperar o fôlego e absorver o muito que estava ali, em poucas
páginas.
O primeiro conto, um dos meus
preferidos e o que tem um dos títulos mais bonitos – Este azul que nos cerca – fala sobre a inveja, a cobiça, e o desejo
de ter o que o outro tem. Quando se consegue isso, o que sempre provoca muito
sofrimento, já não é a mesma coisa, já não tem mais o mesmo sentido. É um conto que consegue ser ao mesmo tempo doce e amargo.
Em A biblioteca, os leitores certamente vão se identificar com o
texto, pois o amor pelos livros está bem ali, em cada palavra. “Os livros salvaram-me”,
diz Dulce Maria Cardoso, e são livros assim que nos salvam também.
"Estes livros, mais do que testemunhas, são meus cúmplices. Sabem tudo de mim. E eu sei tão pouco deles. Ainda que lhes conheça segredos escondidos e erros cândidos. Ainda que lhes saiba da ambição e lhes confirme o fracasso. Sei pouco deles. Os livros conhecem-nos, mas não é da sua natureza deixarem-se conhecer completamente. O mistério destes pequenos deuses."
Em Não esquecerás, vemos que a literatura é também uma forma de nos
lembrarmos de tantas vidas que se vão de forma trágica, por pura negligência; é
também o que nos incita a questionar os acontecimentos do mundo, a olhar
criticamente para os fatos que nos cercam.
O conto Iguais narra a história de dois irmãos, gêmeos idênticos, que
queriam ser iguais em tudo, mas que logo descobrem que são nossas vivências que
nos tornam únicos.
“Identificar os acasos que nos trouxeram ao que somos só nos torna mais frágeis. Fazemo-lo na esperança de percebermos como nos aconteceu tornarmo-nos o que somos. Em vão.”
Em Coisas que acarinho e me morrem entre os dedos somos convidados a
refletir sobre os nossos medos, principalmente o medo de perder, que quase
sempre nos impede de tentar.
"Não quero amar o que não pode, para sempre, aceitar-me de regresso"
Desaparecida, ou a Justiça é um
conto que se inspira livremente em fatos reais (no caso, o desaparecimento de
uma criança, cujo corpo nunca foi encontrado, e a condenação de sua mãe pelo
homicídio), o que mostra o olhar atento e sensível da autora diante da
realidade que é, sim, objeto da literatura e serve para nos fazer refletir sobre
os julgamentos que fazemos em nome do nosso desejo de “justiça”. Há muita
violência e crueldade aqui e tem um final que nos assombra.
Os anjos por dentro conta a história de uma família, do amor de uma
mãe pelos seus dois filhos e da violência do amor, que determina certas
escolhas.
O conto Pânico consegue passar uma angústia imensa em poucas páginas; Humal nos deixa abismados com a
crueldade humana. É um conto que certamente não é fácil de esquecer.
Retrato de um jovem poeta fala de decrepitude, de solidão, da
lembrança e do esquecimento, e dos afetos aos quais nos agarramos, a todo
custo, para sobreviver. É um soco no peito, como quase todos os contos desse
livro.
Autobiografia é um dos meus favoritos e parte da ideia de que
matamos - com o tempo, com as palavras, com as decisões - muito do que somos e
talvez um dia tenhamos que lidar com todos os outros “nós” que deixamos morrer
junto com os nossos sonhos.
É difícil escrever sobre contos
sem dizer mais do que devemos dizer. Mas os contos de Dulce Maria Cardoso encantam
mesmo aqueles que dizem não gostar muito de contos, como eu costumava dizer. Já
entrou para a minha lista de melhores leituras de 2015. Recomendo e aviso: são histórias que fazem o coração doer.
CARDOSO, Dulce Maria.
Tudo são histórias de amor. Lisboa:
Tinta da China, 2014.
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