Our silence will not protect
us.
Audre Lorde
Entre
as muitas palavras que imediatamente vem à mente para descrever esse livro, a
mais forte é, sem dúvida, coragem. Escrever sobre um trauma e ter a bravura de
narrá-lo como Roxane Gay faz nas páginas de Fome:
uma autobiografia do (meu) corpo, que acaba de ser publicado pela Globo
Livros, é um passo importante para todas que sobreviveram a uma violência tão terrível quanto a sofrida pela autora. Logo
no primeiro parágrafo do livro, Roxane afirma:
“A história do
meu corpo não é uma história de triunfo. Esta não é uma autobiografia sobre
perda de peso. Não haverá uma foto da minha versão magra, meu corpo esbelto
adornando a capa deste livro, eu de pé dentro de uma das pernas do jeans de
quando eu era mais gorda. Este não é um livro que irá oferecer motivação. Eu
não tenho nenhum insight poderoso quanto ao que é necessário para superar um
corpo e um apetite indisciplinados. Minha história não é uma história de
sucesso. Minha história é simplesmente uma história verdadeira”.
Este
é um livro-grito, um livro-corpo; é a voz de alguém que tenta lidar com os
eventos traumáticos do passado, que deixaram marcas profundas com as quais é
preciso aprender a conviver e isso não é um processo fácil; é também um livro-afirmação, que revela com muita
sinceridade a dor causada pelas imposições de nossa sociedade sobre os corpos
das mulheres, sobre a gordofobia que causa tanto sofrimento a inúmeras pessoas
mundo afora. Explico: aos doze anos, Roxane Gay, uma menina negra e de classe
média vivendo nos Estados Unidos, foi violentada por um grupo de garotos da
escola. Como acontece a muitas crianças, meninas e mulheres, Roxane calou-se
diante de tamanha violência. E sofreu com esse segredo por anos.
Mantendo
silêncio sobre o estupro que sofreu, sentindo-se culpada (pois infelizmente a
sociedade em que vivemos nos ensina a sentir culpa, mesmo quando somos
vítimas), Roxane não diz nada aos pais ou aos amigos. Cada vez mais
introspectiva, ela encontra na comida um consolo, uma fuga, um espaço de
proteção. Alguns estudos com vítimas de violência sexual indicam o aumento de
peso (e também os transtornos de ansiedade, insônia, depressão, entre outros) como um sintoma comum.
Para Roxane, como para muitas mulheres, comer compulsivamente e engordar
bastante foi uma forma de se proteger e de ficar invisível aos olhos dos homens
e, portanto, livre de sofrer outra violência sexual, uma vez que deixou de ser "desejável" de acordo com os padrões esperados dos corpos femininos.
“O que você tem
de saber é que a minha vida é dividida em duas, repartida de forma não muito
caprichosa. Há o antes e o depois. Antes de engordar. Depois de engordar. Antes
de ser estuprada. Depois de ser estuprada”. (p. 19)
É importante destacar que a
compulsão alimentar é um comportamento inconsciente e, mais importante ainda para refletirmos sobre a gordofobia e os padrões tão violentos impostos
principalmente às mulheres é nos perguntarmos: por que ser gorda é ser
invisível? Acho que essa é uma pergunta chave que o livro deve despertar em nós.
Nem
sempre o corpo gordo foi estigmatizado como ocorre nos dias de hoje, onde em
todos os cantos há informações sobre uma nova forma de emagrecer, uma nova
dieta do momento, por mais absurda e violenta que seja; há sempre um novo discurso que faz com que
as mulheres estejam sempre insatisfeitas com seus corpos, numa busca por um
padrão quase sempre impossível de alcançar. E isso causa grande sofrimento. É bom lembrar que o corpo gordo era valorizado
na Idade Média como sinal de poder e ascendência, só para dar uma amostra de
como esses padrões flutuam com o tempo e de acordo com certos interesses (Georges
Vigarello fala mais sobre isso no livro As
metamorfoses do gordo). Com o tempo, as normas nas sociedades ocidentais
passaram a ser cada vez mais exigentes em relação à aparência pessoal e
corporal, refletindo também as desigualdades de gênero entre homens e mulheres
na medida em que as cobranças em relação ao corpo feminino passaram a ser muito
mais severas. Vale a pena perguntar a quem interessa manter as mulheres
insatisfeitas consigo mesmas, sempre odiando seus corpos, e fazendo tudo o que
for possível para atingir o padrão de magreza estabelecido como o desejável.
É
relevante ter em mente também que nem todas as pessoas gordas vivenciaram
alguma violência e que nem todas as vítimas de violência serão gordas. Esta é
a história de Roxane, na qual ela encontra, através da escrita e do feminismo,
a sua verdade. Mas há muitas outras pessoas gordas, lutando para serem felizes
com o corpo que tem, apesar dos embates diários que precisam travar para se
aceitar em um mundo que a todo instante diz que uma pessoa gorda é sinal de
doença, de fracasso, de falta de vontade, de anormalidade, de feiúra. Ainda estamos longe
de chegar a ser um mundo de respeito pelas diferenças em todos os sentidos, de respeito ao outro, de
aceitação. Mas há muitas mulheres inspiradoras por aí, mostrando que é possível
resistir a essa busca por conformidade. Nesse ponto, o livro me incomodou em
alguns momentos pelo enfoque negativo dado a esse corpo gordo, mostrado por vezes como um
empecilho. Tem muita gente
aí mostrando o contrário. Contudo, entendo também que faz parte desse relato mostrar o processo vivido por Roxane, de passar por momentos de assimilar o discurso negativo sobre o corpo gordo com o qual somos todas bombardeadas diariamente, e também os momentos de resistir a esse discurso, de combatê-lo. E o feminismo serve de força nesses momentos.
“Mesmo sendo tão jovem, eu compreendia que ser
gorda era ser indesejável para os homens, ter o desprezo deles, e eu já sabia
demais sobre o desprezo deles. Isso é o que ensinam à maioria das garotas – que
devemos ser magras e pequenas. Não devemos ocupar espaço. Não devemos ser
vistas e ouvidas, e, se somos vistas, devemos ser uma visão agradável aos
homens, aceitáveis na sociedade. E a maioria das mulheres sabe disso, que nós
devemos desaparecer, mas isso é algo que tem de ser dito de forma ruidosa,
repetida, para que possamos resistir a nos render àquilo que esperam de nós”.
(p. 18)
Fome
é um livro extremamente honesto, e por isso mesmo, muitas vezes sofrido de se
ler, no qual a autora fala sobre os traumas, as dores, os medos, as
dificuldades que enfrenta diariamente por ser uma mulher negra e gorda (e também bissexual), desde os problemas para encontrar roupas, às dificuldades de estar em alguns
espaços, aos comentários ofensivos e cruéis que tem que ouvir sobre seu corpo. Mas é também sobre os
sonhos de Roxane, seu encontro com a escrita, pois sempre foi uma aluna
brilhante, sobre seu percuso de resistência diante das dificuldades. A fome de que
fala Roxane não é apenas por comida, e sim uma fome de muitas coisas que ela
deseja poder fazer e construir. E do ponto de vista da violência sofrida, ser
capaz de contar essa história de forma crua e intensa é um grande passo para a
autora e para outras muitas mulheres que podem encontrar nesse livro uma
inspiração para romperem o silêncio que, como diz a Audre Lorde, não vai nos
proteger. Vale a leitura.
* Roxane Gay é autora do best-seller do New York Times, vencedora de diversos prêmios de prestígio. PhD em Comunicação pela Universidade Técnica do Michigan, Roxane, além de escritora e palestrante, é editora e professora de Escrita Criativa na Universidade de Purdue. Atualmente mora em Lafayette, Indiana, e, de vez em quando, em Los Angeles.
* Recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.
2 comentários:
Que resenha linda, Paula! Estou lendo esse livro agora, e gostando tanto :)
Obrigada, Ju! É um livro que nos emociona mesmo.
beijo grande!
Pipa
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