"De nosso pai, em minhas posses, restou um par de óculos quadrados, armação pesada, antigos. Esse par de óculos fica comigo quando escrevo, a eles me apego e com eles mesmo converso, pedindo menos transcendência do que lucidez. Peço, Pai, me ajuda, e o pai me ajuda através dos óculos, dos óculos que ficam junto a mim, que ficarão junto a mim, um manancial quente e bom destrava a mão, foca meus sentidos naquilo que há de mais sagrado, o amor no qual confiava e me fazia forte, força de andar em frente e não precisar de perdão para coisa alguma. Sentindo nas mãos o metal e o vidro espicaçando a pele de frio, parece que escuto a risada e o choro de papai, que vi apenas uma vez na vida, mas que se fincou dentro de mim como a lembrança de que a dor existe e que no entanto pode ser contornada, e que tudo não é um oceano de lágrimas, como a senhora diz, mas um deserto de se atravessar com alegria."
MOSCOVICH, Cíntia. Por que sou gorda, mamãe? Rio de Janeiro: Record, 2006. p.249
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