Havia um livro que merecia encontrar mais leitores, de tão gostoso de ler que é. Havia uma leitora que queria fazer uma resenha, mas desistiu pelo adiantado da hora e pelo muito que ainda há para ler por hoje. Mas em cada um desses contos tão diferentes criados por Joana Bértholo, todos começando com a palavra "Havia" que tá título ao livro, a autora nos mostra as infinitas possibilidades da literatura de uma forma leve e divertida. Recomendo a leitura e deixo aqui o conto que mais gostei no livro, para aguçar o desejo de ler de vocês.
"Havia uma rapariga que todas as manhãs saía para tomar um café com um poema. Tinha-o visto num filme de cinema. Era menina e havia apenas uma sala de cinema na região. Nesse filme, uma mulher lindíssima que acordava perfeitamente penteada e maquilhada sentava-se numa esplanada, numa praça cheia de pombos que não sujavam o chão. Ficava simplesmente ali, lindíssima, a observar as pessoas que passavam e passeavam. Sobre elas escrevia doces e cândidos poemas. Todas as manhãs, justamente ao terminar o seu poema mais inspirado, aparecia um homem alto e bem-parecido. Tinha ar de galã e bebia galão.Foi a partir deste filme que a rapariga ganhou o hábito de ir para a esplanada do fundo da rua, que não tinha arcadas monumentais, mas tinha pombos. Estes, ao contrário dos outros, sujavam tudo e tornavam a rua praticamente intransitável. Pelo que as pessoas evitavam passar por ali. Mesmo assim, a rapariga que todas as manhãs saía para tomar café, e aguardava o seu galã. Para sua enorme estranheza, nunca um galã se sentou à sua mesa para tomar um galão. Ou lhe elogiar a métrica. Muitos anos assim se passaram. Muitos poemas assim se escreveram.Ao contrário do que se possa julgar, nunca desta espera se gerou um espírito desiludido ou amargo. A rapariga que todas as manhãs saía para tomar café com um poema nunca deixou que a escuridão do cinema turvasse a (sua) realidade. Todas as manhãs a rapariga saía para tomar café com um poema, todas as manhãs com a mesma fé e o mesmo ânimo.Para ela, havia suficiente beleza cinematográfica simplesmente naquele ritual, na teimosia dos pombos contra a brancura do mármore, no modo improvável e simpático como a cadeira de ferro se tinha ajustado às suas formas redondas, na atenção turística que os poucos transeuntes – e sempre os mesmos – lhe entregavam num sorriso, ao vê-la sempre ali, estátua e marco daquela rua. Mais embelezadora que qualquer arcada.
Muitos anos assim se passaram. Muitos poemas assim se escreveram.”
Joana Bértholo. Havia. Lisboa: Editorial Caminho, 2012.
Joana Bértholo nasceu em Lisboa em 1982. Frequentou o Curso Geral de Artes na Escola Secundária António Arroio, e depois a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, onde se licenciou em Design de Comunicação. É doutora em Estudos culturais pela European University Viadrina Frankfurt (Oder), na Alemanha. Publicou os livros Diálogos Para o Fim do Mundo (2009)- Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho (2009); Havia - histórias de coisas que havia e de outras que vai havendo (2012); O Lago Avesso - uma hipótese biográfica (2013); e Inventário do Pó (2015).
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