sábado, 25 de junho de 2016

Havia


Havia um livro que merecia encontrar mais leitores, de tão gostoso de ler que é. Havia uma leitora que queria fazer uma resenha, mas desistiu pelo adiantado da hora e pelo muito que ainda há para ler por hoje. Mas em cada um desses contos tão diferentes criados por Joana Bértholo, todos começando com a palavra "Havia" que tá título ao livro, a autora nos mostra as infinitas possibilidades da literatura de uma forma leve e divertida. Recomendo a leitura e deixo aqui o conto que mais gostei no livro, para aguçar o desejo de ler de vocês.

"Havia uma rapariga que todas as manhãs saía para tomar um café com um poema. Tinha-o visto num filme de cinema. Era menina e havia apenas uma sala de cinema na região. Nesse filme, uma mulher lindíssima que acordava perfeitamente penteada e maquilhada sentava-se numa esplanada, numa praça cheia de pombos que não sujavam o chão. Ficava simplesmente ali, lindíssima, a observar as pessoas que passavam e passeavam. Sobre elas escrevia doces e cândidos poemas. Todas as manhãs, justamente ao terminar o seu poema mais inspirado, aparecia um homem alto e bem-parecido. Tinha ar de galã e bebia galão.Foi a partir deste filme que a rapariga ganhou o hábito de ir para a esplanada do fundo da rua, que não tinha arcadas monumentais, mas tinha pombos. Estes, ao contrário dos outros, sujavam tudo e tornavam a rua praticamente intransitável. Pelo que as pessoas evitavam passar por ali. Mesmo assim, a rapariga que todas as manhãs saía para tomar café, e aguardava o seu galã. Para sua enorme estranheza, nunca um galã se sentou à sua mesa para tomar um galão. Ou lhe elogiar a métrica. Muitos anos assim se passaram. Muitos poemas assim se escreveram.Ao contrário do que se possa julgar, nunca desta espera se gerou um espírito desiludido ou amargo. A rapariga que todas as manhãs saía para tomar café com um poema nunca deixou que a escuridão do cinema turvasse a (sua) realidade. Todas as manhãs a rapariga saía para tomar café com um poema, todas as manhãs com a mesma fé e o mesmo ânimo.Para ela, havia suficiente beleza cinematográfica simplesmente naquele ritual, na teimosia dos pombos contra a brancura do mármore, no modo improvável e simpático como a cadeira de ferro se tinha ajustado às suas formas redondas, na atenção turística que os poucos transeuntes – e sempre os mesmos – lhe entregavam num sorriso, ao vê-la sempre ali, estátua e marco daquela rua. Mais embelezadora que qualquer arcada.
Muitos anos assim se passaram. Muitos poemas assim se escreveram.”


Joana Bértholo. Havia. Lisboa: Editorial Caminho, 2012.

Joana Bértholo nasceu em Lisboa em 1982. Frequentou o Curso Geral de Artes na Escola Secundária António Arroio, e depois a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, onde se licenciou em Design de Comunicação. É doutora em Estudos culturais pela European University Viadrina Frankfurt (Oder), na Alemanha. Publicou os livros Diálogos Para o Fim do Mundo (2009)- Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho (2009); Havia - histórias de coisas que havia e de outras que vai havendo (2012); O Lago Avesso - uma hipótese biográfica (2013); e Inventário do Pó (2015).

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