quarta-feira, 15 de junho de 2016

A definição do amor



Se o o título do livro pode parecer pretensioso à primeira vista, logo somos levados pela prosa cheia de lirismo de Jorge Reis-Sá a pensar diferente. Não porque o livro nos dê qualquer tipo de resposta, ou tente definir o amor, mas por levantar tantas perguntas e reflexões sobre as muitas ideias de amor apresentadas, tanto na trama central quanto nas histórias que a intercalam e são intituladas de "vésperas" pelo autor.

No centro da trama temos a história de Susana, uma mulher de quarenta e pouco anos que tem um AVC durante um dia de trabalho e é levada para o hospital onde, após o diagnóstico de morte cerebral, também se sabe que ela está grávida de poucos meses. Mantida sob cuidados apenas para que termine de gestar o bebê, é um daqueles casos difíceis da medicina, mas nada impossível: basta vermos a notícia recente de caso semelhante em que uma mulher com morte cerebral consegue concluir a gestação sob cuidados médicos, dando à luz um bebê em Portugal.

Quem narra os acontecimentos é Francisco, marido de Susana, que passa a escrever como forma de sobreviver à espera e ao difícil processo de luto que vivencia, ao mesmo tempo em que tenta aceitar que a nova vida que surge (de sua filha Matilde) levará embora a vida que pouco a pouco se esvai de sua adorada esposa. O texto é uma espécie de diário de luto, no qual sentimos o sofrimento de quem perde alguém que se ama e se vê lutando para continuar vivendo pelos filhos. 

Entre lembranças dos momentos felizes de seu casamento, e relatos do dia a dia no hospital ao lado da esposa ausente, Francisco se vê incapaz de qualquer demonstração de alegria e esperança até mesmo com o filho pequeno. Em silêncio, observa o mundo ao redor, as pessoas da família e os amigos, analisando suas reações diante da morte de Susana. Jorge Reis-Sá constrói um texto sobre a morte para nos fazer pensar no amor. Em um tipo de amor que faz sofrer, quando deixa de existir, mas também no amor que renasce na vida de um filho gerado pela mãe, em seus últimos dias de vida; no amor que renasce entre dois vizinhos já idosos e viúvos que se encontram em sua solidão e voltam a viver com alegria quando ninguém mais espera que o façam.

Apesar do sentimento que perpassa os pequenos fragmentos do diário de Francisco, onde há uma tristeza e um desamparo diante dos quais é difícil permanecer sem se emocionar, o que mais me surpreendeu na narrativa de Reis-Sá foram as "vésperas", os capítulos que intercalam esse diário de luto e que nos contam outras histórias de pessoas da família. Nessas partes onde "o amor" por vezes é maldito, há violência e dor, abusos e violações, entre outros atos destrutivos que muitas vezes são realizados em nome de uma "definição de amor" distorcida. Há também espaço nelas para outras formas de amor, que nossa sociedade homofóbica teima em não aceitar. São essas possibilidades das vésperas que engradecem o texto de Reis-Sá e abrem espaço para reflexões importantes, principalmente nesses tempos em que atitudes de ódio são realizadas em nome de um discurso deturpado de amor. Mais do que o amor de um homem por uma mulher, acredito que o livro extrapola os limites de uma definição simples desse sentimento, fazendo-nos pensar sobre as muitas formas de amor existentes em nossas relações e que, mais do que nunca, talvez estejamos mesmo precisando tentar redefinir.

REIS-SÁ, Jorge. A definição do amor. São Paulo: Tordesilhas, 2016.

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Jorge Reis-Sá nasceu em Vila Nova de Famalicão, uma pequena cidade no norte de Portugal, em 1977. Entre 1999 e 2009, fundou e dirigiu as Quasi Edições e foi diretor editorial da Babel de 2010 a 2013. Sua extensa obra de poesia está reunida no volume "Instituto de Antropologia – Todos os poemas" (Glaciar, 2013). Publicou também os livros de contos "Por ser preciso" (Cosmorama, 2004) e "Terra" (Sextante Editora, 2007), além de volumes de crônicas e dois romances "Todos os dias" (Record, 2007) e "O Dom" (Record, 2009). Este ano lança "A definição do amor" pelo selo Tordesilhas.

*Recebi este livro como cortesia da Editora Alaúde.

*Se gostou da resenha, você também pode se interessar por Todos os dias, de Jorge Reis-Sá.

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