Um idioma criado e usado pelas mulheres e mantido em segredo
durante milhares de anos na China foi o que motivou a escritora Lisa See a
escrever Flor da neve e o leque secreto.
A autora pesquisou sobre essa escrita que só as mulheres chinesas compreendiam
e usavam para se comunicar umas com as outras e compartilhar as suas histórias
pessoais. Lisa See viajou para a China para pesquisar mais sobre o nu shu, onde pôde conhecer algumas
mulheres que aprenderam esse idioma secreto na infância, quando tiveram seus pés atados com uma bandagem para que diminuíssem de tamanho, pois na China pés
pequenos eram sinônimos de beleza e também de status social, uma vez que
permitiam às mulheres conseguir um melhor casamento. Essa tradição, extremamente violenta
e que provocava muito sofrimento às meninas (isso acontecia por volta dos seis
anos de idade) e que hoje é proibida, era realizada pelas próprias mães e
demais mulheres da família e durava cerca de dois anos, período no qual as
meninas ficavam em um quarto, sem sair, trocando as bandagens diariamente e caminhavam com os pés atados sobre os ossos
quebrados. Na foto abaixo, os pés de uma mulher chinesa que passou por esse processo (mais fotos aqui). É difícil olhar para essas imagens sem pensar: como uma cultura decide o que é bonito? Como nosso valor enquanto mulheres muda de acordo com esses conceitos?
Ambientado na China no século XIX, o romance é narrado por Lírio,
uma viúva de 80 anos que no final da vida decide escrever a história de uma
amizade que lhe foi essencial: a que teve com Flor da Neve, uma menina que
conheceu quando tinha seis anos, na mesma época em que o processo de
bandagem dos pés das duas começou. Algumas meninas encontravam essa amizade especial: a laotong, ou velha igual, aquela que tinha a mesma data
de nascimento, a mesma altura, o mesmo signo astrológico e outras coincidências
do tipo. Lírio e Flor da Neve estabelecem essa amizade, que é mais forte até
mesmo que os laços do matrimônio. O romance narra, portanto, a história dessa
amizade, desde a infância até a velhice, abordando os laços de afeto que
uniram essas mulheres durante todos os momentos importantes de suas vidas,
assim como os seus sofrimentos, e ilustra a condição das mulheres na China do século
XIX.
Para as famílias, tudo o que importava era ter um filho, pois na cultura chinesa e patriarcal é o filho homem quem poderá cuidar dos bens da família e dos pais na velhice, assegurando a sua entrada no "céu". O filho homem, ao se casar, traz para a família uma nora que fará todas as tarefas domésticas, em total submissão, como as mulheres são ensinadas desde a infância. Os pais não escondiam a decepção quando nascia uma menina. Alguns chegavam a dizer que era melhor ter tido um cachorro, pois teriam que alimentar e cuidar de suas filhas, juntar dinheiro para o dote, e depois entregá-las a outra família no casamento. Ter uma filha para eles significava financeiramente (e também emocionalmente) perder.
Além de serem consideradas "os galhos inúteis da família", as meninas eram subalimentadas, pois os homens eram sempre os primeiros a comer, e as mulheres viviam das sobras, sem reclamar. Ao completar seis anos, passavam pelo processo de bandagem dos pés que lhes tirava a liberdade de andar e correr como qualquer criança normal durante a infância. A delimitação entre espaço doméstico para as mulheres e espaço público entre os homens torna-se evidente desde os primeiros dias de vida.
Iletradas, analfabetas na escrita dos homens, as mulheres criam então essa escrita secreta, o nu shu, que era passada de geração para geração registrando assim muito da tradição oral em leques, lenços e cartas nas quais as mulheres falavam sobre suas vivências. Alguns homens tomaram conhecimento do nu shu, mas como era algo "de mulheres", essa escrita não foi levada à sério, como se fosse algo menor. Qualquer semelhança com a visão que muitos homens ainda tem da escrita das mulheres nos dias de hoje não é mera coincidência.
Apesar de amigas iguais, ou laotong, Lírio e Flor da Neve tiveram destinos bem diferentes. Enquanto Lírio, por ter os menores pés já vistos na aldeia (também chamados pés de lótus), consegue se casar com o filho de um dos homens mais ricos e importantes da região, Flor da Neve, oriunda de uma família tradicional que perdeu a sua fortuna acaba por se casar com um açougueiro, um homem que foi violento com ela durante toda a vida. A vida de escravidão e violência dessas mulheres, sua angústia constante para ter um filho homem e conseguir mantê-lo com vida para garantir a sua permanência na família é algo terrível. Mas mesmo entre todos os percalços essas mulheres se ajudam como podem, apoiando-se durante todas as etapas da vida, ainda que em ambientes tão distantes. É disso que o livro trata: de uma amizade verdadeira, que se fez possível em muitos momentos através dessa escrita.Acredita-se que nu shu - a escrita secreta usada pelas mulheres em uma área remota da província de Hunan, na região sudoeste da China - foi desenvolvida há mil anos. Ela parece ser a única linguagem escrita do mundo criada por mulheres exclusivamente para o seu próprio uso.
***
Lisa See nasceu em Paris, mas
cresceu em Los Angeles, mais especificamente em Chinatown. Atualmente vive em
Los Angeles. O romance foi adaptado para o cinema em 2011.
SEE, Lisa. Flor da neve e o leque secreto. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. Tradução: Léa Viveiros de Castro. 335 páginas.
SEE, Lisa. Flor da neve e o leque secreto. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. Tradução: Léa Viveiros de Castro. 335 páginas.
5 comentários:
Belíssima resenha!
Nunca tinha ouvido falar sobre esse livro, mas logo me interessei por ser sobre a cultura chinesa. Vejo poucos livros a esse respeito sendo resenhados em blogs e até mesmo lançados por editoras. Esse foi lançado em 2005 e é uma pena que não seja mais divulgado, pois pela sua resenha parece ser um livro belíssimo.
Beijos e adoro suas resenhas :*
http://ourivesdaspalavras.blogspot.com.br/
Eu já tinha colocado o filme na minha lista, mas não sabia que tratava de bandagem dos pés e de um idioma próprio das mulheres. Minha curiosidade aumentou muito mais agora! Mais uma vez, obrigada por fazer minhas listas (de filmes e livros) crescerem!
beijo
Que lindo seu texto, Pipa!
Com certeza vou querer ler.
Beijo enorme!
Esse livro deve ser tristíssimo e essa escrita de mulheres para mulheres é algo que soa hoje tão poderoso, tão forte...engraçado como não despertava atenção na época.
Adorei a indicação!
Bjoo grande!
Assisti o filme, é maravilhoso, um filme forte, com uma fotografia linda e a história do passado contada em pararelo com os dias atuais.
Marcante quando a personagem nos tempos atuais, chega cansada e tira seus sapatos de salto alto e solado vermelho, a cena me marcou muito pois reflete o quanto ainda nos tempos atuais nos moldamos para atender padrões de beleza e moda, assim como era feito com as mulheres da china antiga através das bandagens nos pés moldando ao padrão da época.
Vale a pena assistir!
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