Romance sobre deslocamentos, Hanói narra a história de David, um rapaz de 32 anos apaixonado por música, que trabalha em uma loja de materiais de construção em Chicago, Estados Unidos. David acaba de ser diagnosticado com um câncer agressivo, em estado avançado, para o qual não há mais tratamento. Ele só tem mais três ou quatro meses de vida e, abalado com a notícia da morte próxima, começa a repensar algumas questões de sua vida. Sozinho, sem parentes próximos, sem namorada, David decide se desfazer de tudo, assim como na lenda dos elefantes que se afastam de tudo para morrerem sozinhos. Ele pede demissão do trabalho e começa a doar seus pertences antes de escolher um lugar para onde viajará sozinho, o seu último destino.
Quando te dizem que é o último gole, David pensou, você para, aguça os sentidos e sente o gosto da bebida pela primeira vez (LISBOA, 2013, p. 13)
David é um exemplo dos deslocamentos contemporâneos, que parecem ser o tema central do romance de Adriana Lisboa. Filho de pai brasileiro que imigrou para os Estados Unidos em busca de melhores condições de vida, e de uma mãe mexicana, David cresceu nos Estados Unidos em contato com três culturas e idiomas diferentes. Apesar disso, a língua que aprendeu a falar tão bem, o inglês, é a língua que o pai nunca conseguiu aprender e que a sua mãe falava com bastante sotaque, ou seja, uma barreira de comunicação com o filho e com o novo lugar que habitam, onde sempre serão estrangeiros, um lugar ao qual não pertencem. Sem família, David é esse homem desenraizado, que reconhece na música a possibilidade universal de comunicação, independente das fronteiras linguísticas ou geográficas. É por meio da música que David se expressa e se comunica com o mundo, mas essa comunicação não se dá com sua namorada, Lisa, que despreza sua condição de músico amador, sua falta de ambição diante da vida. Quando Lisa joga o trompete de David pela janela, evidencia-se que essa comunicação entre eles não se estabelece.
Quando conhece Alex, uma jovem de vinte e dois anos que trabalha no mercado vietnamita do bairro, David encontra a possibilidade de ter ao seu lado algumas horas de alegria enquanto a doença progressivamente se agrava. Sim, Hanói também é uma história de amor. Alex (nome oriental para um rosto cinquenta por cento) também é resultado de deslocamentos: sua avó, Linh, engravidou de um soldado estadunidense, um soldado inimigo, durante a Guerra do Vietnã. Por conta disso, tanto ela quanto a sua filha sofreram muito preconceito por “trair” seu próprio povo. Do soldado, elas nunca mais tiveram notícias. Anos depois, Linh parte para os Estados Unidos com a filha de dezessete anos, Huong, em busca de trabalho e um recomeço. A amizade com Trung, um vietnamita que também migrou para os Estados Unidos, onde abriu um mercado de produtos vietnamitas, permitiu que eles formassem uma comunidade, pois compartilhavam a mesma língua e cultura, assim como a experiência da Guerra do Vietnã, que foi completamente distinta da experiência que os estadunidenses tiveram dessa mesma guerra, considerada a Guerra Americana. A língua, ao mesmo tempo em que os unia, também os segregava:
Trung só falava com Alex em vietnamita na presença da mãe e da avó dela. Uma espécie de decência. Com Alex, o que era mais confortável para Alex. Mas, quando as gerações mais velhas estavam presentes, prioridade às gerações mais velhas (LISBOA, 2013, p. 36)
Deslocados de seu país de origem, de sua cultura e de seus antepassados, essas personagens compartilham a sensação de não pertencimento:
Quanto a Huong e Lihn, que conheciam bem essa história (a partir da fase náutica), suas pequenas almas também não pareciam estar ali, presentes, quando seus pés pisavam as calçadas das novas cidades pelas quais passavam. Mesmo quando aprendiam palavras do novo idioma e decifravam os costumes esquisitos de seu novo país.
Suas almas não estavam grudadas no corpo, Alex pensava. Pairavam em algum outro lugar, como se fossem pipas que elas empinavam e que flutuavam lá no alto, onde havia mais ar puro e menos todas as outras coisas (LISBOA, 2013, pp. 46-47)
Ao representar mulheres imigrantes, com vivências sofridas em meio à violência da guerra, a autora foge dos estereótipos comuns que representam o imigrante apenas como o homem em busca de melhores condições de vida. A perspectiva apresentada no romance de Lisboa também é feminina. Além disso, é possível observar a presença do trabalho dessas mulheres imigrantes nos Estados Unidos, e todo o preconceito que sofriam, além da invisibilidade que as cercavam, excluídas por não partilharem o conhecimento do novo idioma e também por sua posição social.
Alex, da terceira geração dessa família, cinquenta por cento vietnamita, cinquenta por cento estadunidense, afasta-se de seus pais, assim como ocorre com David, principalmente por conta do idioma e do fato de não compartilhar com a mãe e a avó as lembranças de uma época e de um lugar no passado para o qual não é possível regressar.
Além de falar dos deslocamentos tão comuns no mundo contemporâneo, Hanói nos faz repensar essas fronteiras identitárias, a barreira linguística e o sentimento de pertencimento (ou não pertencimento) que é igualmente comum ao mundo moderno. O mais interessante do romance, contudo, é a forma que a autora apresenta personagens “sem raízes”, com histórias complexas, para falar de uma essência que os aproxima, de uma solidão que os aflige, independente do idioma ou de sua localização geográfica; algo que os torna mais humanos, aproximando-os do leitor: a consciência da proximidade da morte, da finitude da vida. Um livro sensível, delicado, aparentemente simples, mas que trata de sentimentos tão profundos que nós também somos transportados por esses lugares, mas não sem regressar dessa leitura de coração partido.
Para ler o primeiro capítulo de Hanói, clique aqui.
LISBOA,Adriana. Hanói. Rio de Janeiro: Objetiva,
2013.
3 comentários:
Paula, depois desta resenha incrível deu até vontade de ler este livro
Obrigada, Gilberto! Fiquei realmente encantada com esse livro, eu recomendo a leitura!
beijo!
Pipa, amei a ideia de regressa da leitura de coração partido. E é tão compreensivo isso...são nossos dilemas também. Não conheço essa autora, mas assim que tiver chance vou ler esse livro. Fiquei empolgada. Só leitura incrível, heim?
Ei...vc percebeu a citação sobre a pipa? Achei lindo.
Beijo enorme!
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