domingo, 23 de novembro de 2014

A filha do coveiro


O romance narra a história de Rebecca Esther Schwart, filha de imigrantes que chegaram aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra fugindo do nazismo. A família de Rebecca, composta pelo pai, Jacob Schwart, pela mãe Anna Schwart e seus dois filhos, chegou de navio no porto de Nova York. Na chegada ao porto Rebecca nasce ainda no navio, após horas de parto muito sofridas para sua mãe. É nos Estados Unidos que a família busca recomeçar a vida e pouco se sabe sobre o que aconteceu antes da viagem em sua cidade natal, mas fica claro, desde o início, pelo comportamento abalado da mãe e do pai, que eles passaram por situações bem traumáticas.
Sem dinheiro algum e com o estigma de ser "judeu", Jacob Schwart encontra emprego como coveiro no cemitério da cidade, e passa a viver com sua família no chalé dentro do cemitério. A pequena casa, em péssimas condições, representa a precariedade da vida daquela família, totalmente destruída e transformada pelos horrores da guerra. O preconceito marca cada um deles desde sua chegada aos Estados Unidos, onde tentam recomeçar e buscam ser esquecidos pelos demais, como se a invisibilidade pudesse dar a eles alguma segurança. A mãe de Rebecca está deprimida e ausente; os dois filhos ajudam o pai nos afazeres do cemitério e Rebecca é o tempo todo desprezada pelo pai, por ser menina. As questões de gênero são muito fortes nessa história e a violência contra a mulher está presente em toda a narrativa, aliás, é um tema recorrente na obra de Joyce Carol Oates.
A narrativa não é linear e mescla presente e passado para, aos poucos, ir revelando a complexidade das personagens. Começamos conhecendo Rebecca, uma jovem que trabalha em uma fábrica nos Estados Unidos, próxima ao vilarejo onde mora com o filho e é casada com um homem que está sempre viajando "a trabalho". Ganhando muito pouco pelas horas de trabalho na fábrica, onde sofre assédio dos colegas por ser mulher, Rebecca está constantemente apavorada e em estado de alerta, com medo de que algo ruim possa lhe acontecer. É o medo compartilhado pelas mulheres ao voltar para casa sozinhas; é o medo de que o marido a culpe pelo acontecido, porque ainda vivemos em uma sociedade que culpa a vítima pela violência sofrida.
A primeira parte do livro mostra exatamente como Rebecca se sente, e podemos acompanhar o que ela pensa nesse trajeto diário da fábrica para a sua casa, compartilhando sua angústia e o medo que sente. Só mais adiante o leitor compreende o porquê desse medo, e assim ficamos presos na narrativa de Joyce, que nos aproxima imensamente da vida das suas personagens.
Em seguida, voltamos um pouco ao passado para compreender a história trágica da família de Rebecca, com os traumas da guerra e a vida sofrida que levaram nos Estados Unidos. A violência da guerra e o que ela faz com os homens fica bem representada em Jacob e Anna, que nunca mais conseguem ser o que foram um dia. As marcas do sofrimento serão para sempre visíveis nos dois que, mesmo nos Estados Unidos, convivem com o medo de serem descobertos ali. O preconceito dos estadunidenses que desprezam essa família sem ao menos tomar conhecimento dos seus sofrimentos deixa marcas profundas nas personagens. Sofrimento que se transforma em agressividade e loucura, que destrói as relações familiares dos Schwart. Rebecca, sempre desprezada por ser mulher, é a que mais se parece com o pai na inteligência e na esperteza. Mas o destino das mulheres era o casamento, e não os estudos, e assim Rebecca vê seu desejo de continuar progredindo da escolha frustrado. Os outros dois filhos varões de Jacob não são muito inteligentes, são incentivados pelo pai a abandonar a escola e a se dedicar unicamente ao trabalho. Por conta disso, são constantemente rejeitados e humilhados pelo pai, que desconta nos filhos e na mulher a raiva que sente pelo que passou, pela frustração de ter um trabalho muito diferente do trabalho intelectual que desempenhava em sua cidade natal. A frustração pela impotência diante do mal vivenciado na guerra acaba por se transformar em violência e agressividade e culminará com o abandono da vida.
Depois de um trágico incidente, a órfã Rebecca segue vivendo sozinha, contando com a ajuda de colegas, mas ela carrega a história dessa família consigo, o que inevitavelmente afetará muito sua vida. Rebecca começa a trabalhar como camareira em um hotel, onde conhecerá seu marido, Tignor. A possibilidade de trabalho para as mulheres ao longo da história é sempre restrita a cargos subalternos, marcados pela invisibilidade e muito sujeitos a todo tipo de violências, desde o desrespeito básico aos direitos das trabalhadoras à violência física a que estão constantemente submetidas por serem mulheres. A violência contra a mulher está presente no ambiente de trabalho como se fosse inerente à função, e também aparece com muita força no ambiente doméstico. As mulheres acumulam duas jornadas de trabalho, contribuem com uma parte substancial do orçamento doméstico, o que reflete uma realidade não muito distante da atual.
A violência é um elemento importante na narrativa de Joyce, que constrói personagens que nos fazem questionar pontos importantes referentes ao gênero: a violência doméstica, a violência no ambiente de trabalho, a desigualdade na remuneração entre homens e mulheres pelo mesmo trabalho e, o que considero mais importante, a possibilidade dessas mulheres resistirem à violência  que enfrentam e de recomeçar. Joyce dá voz àqueles que não conseguem falar para expressar sua dor e seu sofrimento.
O livro é dividido em três partes: o prólogo nos apresenta a Rebecca operária e já casada; a primeira parte nos apresenta a história da família de Rebecca e tudo o que aconteceu com eles desde sua chegada de navio aos Estados Unidos, assim como o relacionamento de Rebecca com seu marido, marcado por cenas fortes de violência. A terceira parte do livro, que é sim uma narrativa de fôlego (são 600 páginas), conta a vida de Rebecca e do filho e sua tentativa de recomeço fugindo das agressões do marido.
A filha do coveiro é um livro que envolve o leitor e que aborda todas essas questões mencionadas a partir da perspectiva feminina e, por isso, proporciona uma reflexão interessante que merece ser lida. Recomendo.

OATES, Joyce Carol. A filha do coveiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. 600 páginas. 
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Joyce Carol Oates é uma escritora norte-americana e tem 76 anos. É autora de algumas das obras de literatura mais significativas da atualidade. Agraciada com os prêmios norte-americanos National Book Award e o The Pen/Malamud Award for Excellence in Short Fiction, é membro da Academia Americana de Artes e Letras e titular de cátedra na Universidade de Princeton, Nova Jersey, onde leciona desde 1978.
É tida por vezes como uma das personalidades favoritas ao prêmio Nobel da Literatura, surgindo em diversas listas de finalistas veiculadas pela imprensa. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Nunca tinha ouvido falar desse livro. Me interessei pela resenha e já vou adicionar no Skoob como desejado.
Tem uma temática que me interessa muito.

Estou te seguindo. Espero sua visita.
Beijos
http://dancadasbolhas.blogspot.com.br/

Pipa disse...

Oi, Samira!

Obrigada pela visita! Gostei muito do livro da Oates, espero que você goste também!

um abraço,
Pipa