quinta-feira, 22 de maio de 2014

Caderno de um ausente



"... eu ia te ensinar por que de não em não o tempo se sacia de nós, o tempo nos nega os desejos e nos avilta os sonhos, por que não existe a terra prometida senão em nós, e por que ela está cercada de continentes barrentos e istmos movediços, eu ia te levar para passear nos bosques que o meu imaginário esculpe, eu ia te ensinar a podar os ramos mais altos das árvores, porque se é preciso aprender a plantá-las é igualmente vital que se saiba apará-las, se eu pudesse, Bia, eu ia te ensinar tudo isso e muito, muito mais, eu ia até te contar baixinho, eu ia te contar o segredo do universo como quem sussurra uma canção de ninar, mas eu não posso, filha, eu só posso te garantir, agora que chegastes, a certeza da despedida". [pág.36]

Às vezes anotamos em um caderno o que precisamos lembrar; muitas vezes, o que não queremos esquecer. Em outras muitas vezes, a palavra é aquilo que nos salva de nós mesmos, do que sentimos tão intensamente "na carne": um espanto diante da vida que nasce, um temor pelos dias que se aproximam do fim. É em um caderno que Carrascoza conta a história de um pai que, com mais de cinquenta anos de idade e diante do nascimento da filha, constata que talvez não estará presente para vê-la amadurecer. É nesse tom melancólico diante da consciência de sua finitude que o narrador faz uma reflexão poética e filosófica sobre a vida, sobre as pequenas coisas do dia a dia que fazem os dias valerem a pena. É um caderno já cheio de ausências e silêncios, que ficam impressos nessa edição tão linda da Cosac Naify; um caderno que o pai deixa para a filha, como um registro de suas impressões desde seu nascimento ao seu primeiro ano de vida, com histórias de sua família, com seu olhar amoroso para sua companheira. Um caderno com a escrita delicada e poética de Carrascoza com o que um pai talvez gostasse de dizer para a filha no futuro, quando ela estivesse descobrindo com os próprios passos os caminhos incertos da vida. A beleza do que é dito nesse livro vai além de qualquer declaração de amor, não só do pai para sua filha recém-nascida, Beatriz, mas do pai pela mãe de Beatriz, aquela que "serena as tempestades". O livro representou para mim um daqueles instantes em que nos damos conta do quanto somos pequenos diante desse mistério maior que é a vida, e do quanto o tempo passa sem nos darmos conta, quase sempre, do que de mais importante os dias são feitos. Um livro pequenino, mas com uma narrativa grandiosa.

"a palavra se faz carne, e a carne se lacera, a carne apodrece aos poucos, mas é também pela carne quea palavra se imortaliza. Não há borracha para um fato já vivido, pode-se erguer represas e costões, muralhas e fortalezas para barrar o fluxo das horas, mas, uma vez que o sol se torne sombra, que o luar prenda no céu em luto, a névoa se disperse na paisagem pendurada à parede, o dedo acione o gatilho, nada mais se pode fazer; nossa jornada, aqui, é única, a ninguém será dada a prerrogativa, salvadora ou danosa, da reescrita." [pág. 17]

João Anzanello Carrascoza. Caderno de um ausente. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 128 páginas.

4 comentários:

Anônimo disse...

Tenho dele aqui Dos 7 aos 40 (não sei se é exatamente assim o título) e pelo que eu percebo ele é um autor muito sensível, quero ler em breve. Agora esse que você resenhou (lindamente) tá com cara que vai me fazer chorar... =)
Beijinho!

Pipa disse...

Oi, Lua! Tenho vontade de ler "Dos 7 aos 40" também. Dele já li "Aquela água toda" e gostei muito, e realmente me emocionei com "Caderno de um ausente". Se você for como eu vai chorar mesmo (eu chorei) :)

beijo!
Pipa

Anna disse...

Ai Pipa, já quase choro com sua resenha linda... então fico pensando como será quando eu me abraçar a esse livro... rs novos oceanos brotarão!!! rs

Xerinhos, lindeza!

Alexandre Melo disse...

Livro maravilhoso! Li recentemente e adorei. Bela resenha, encaixou perfeito no tema da obra.
Alexandre do blog Do Que Eu Leio
@doqueeuleio