domingo, 9 de outubro de 2016

Dias de abandono




Sempre que me perguntam para que serve a literatura, a primeira coisa em que penso é que a literatura nos permite vivenciar outras experiências, uma vez que nos coloca no lugar do outro, cria em nós empatia pelo que ele ou ela vivencia ou sofre. É uma possibilidade de sempre acrescentar conhecimentos ou nos fazer questionar nossas verdades, tornando-nos, assim, pessoas melhores. 

Começo falando de empatia, porque esta palavra esteve muito presente durante a minha leitura de Dias de abandono, da Elena Ferrante. Nesse romance, Ferrante retrata a situação de luto vivenciada pela protagonista, Olga, uma mulher que foi abandonada pelo marido e se sente absolutamente perdida com seus dois filhos e a sensação de vazio que a acompanha por algum tempo. 

Se para muitos o tema do abandono pode ser considerado um clichê, na narrativa de Ferrante uma história aparentemente comum se engrandece pela sutileza com que ela se aproxima dessa personagem e de seus sentimentos. O choque de ter sido deixada pelo marido, a quem se dedicou durante toda a sua vida, é o ponto de partida para várias reflexões feitas pela personagem sobre a condição da mulher em um mundo que ainda valoriza o casamento como atestado de sucesso (ou fracasso, no caso da personagem). 

A imagem da infância que assombra a protagonista é a de uma mulher linda, mãe de duas crianças, que um dia é abandonada pelo marido e passa a ser alvo de todos os tipos de comentários pelas demais mulheres do bairro, inclusive sua própria mãe. É dessa imagem de "pobre coitada" que a personagem busca se afastar a todo custo, mas quando é deixada pelo marido, percebe que ela está na mesma situação. Quando se trata da dor que sentimos, acredito que nem tanto por ter perdido um amor, mas pelo status de mulher casada e bem sucedida que se perde, há uma grande semelhança em todas nós. É essa tomada de consciência da personagem, que passa a perceber o quanto se anulou no casamento, o quanto viveu em função do marido e para ele, que parece desencadear esse processo de luto, tão bem descrito por Ferrante em todas as suas etapas. 

Se no início temos vontade de sacudir a personagem e aconselhá-la a se desapegar desse homem que não a respeita enquanto ela vive a etapa da negação, logo em seguida sentimos vontade de consolá-la, pois como diz Leslie Jamison em Exames de empatia: "dor representada também é dor". E são os detalhes de algumas cenas em que podemos ver o quanto a protagonista está em pedaços que nos toca e causa empatia. Não pelo marido que a trocou por uma mulher bem mais jovem, mas por ela, por todos os dias em que ela deixou de ser prioridade em sua própria vida, pelo muito que ela terá que reconstruir. E gostei imenso do fato de que a possibilidade de se reconstruir e recomeçar exista, por ela.

Um livro que exercita a nossa empatia, na medida em que só consegue ser apreciado plenamente se nos distanciamos de tantos pré-julgamentos que às vezes reproduzimos sem pensar, mas que faz todo sentido se nos colocamos no lugar do outro, com empatia por sua dor, por seu sofrimento. Elena Ferrante mais uma vez brilha ao escrever um texto seco, frio, com a mesma qualidade estética dos livros anteriores, e que nos leva por todo o processo de angústia e luto da personagem durante a leitura, como se nós também buscássemos ar para fazer essa travessia. Apesar de ser um romance relativamente curto, é um livro que incomoda, que nos inquieta e que, assim como a personagem parece sentir, provoca o mesmo sentimento de termos, enfim, conseguido atravessar essas linhas. Uma das melhores leituras do ano.

*Recebi este livro como cortesia da editora Globo Livros.

Um comentário:

HSS disse...

Logo, logo, teremos em Portugal mais um da E.Ferrante:
http://www.fnac.pt/Escombros-Elena-Ferrante/a996033
Ansiosa!
Bjinhos
Helia Stocks