Sonhos em tempo de guerra é o primeiro volume de memórias do escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong'o. Nascido em 1938, em uma região rural do Quênia, ele cresceu sob o impacto da Segunda Guerra Mundial nas colônias britânicas. Este primeiro volume reúne as memórias de infância, nas quais o autor relembra o cotidiano e as peculiaridades de sua família (seu pai era casado com quatro esposas, e todas viviam próximas umas das outras, cuidando dos 24 filhos que formavam ao todo essa família) e, principalmente, destaca como as histórias da tradição oral ouvidas na sua infância, ao redor do fogo e em conversas em sua aldeia, contribuíram para que ele se tornasse um escritor. Vale lembrar que Ngũgĩ wa Thiong'o tem sido um dos autores cotados a ganhar o Prêmio Nobel nos últimos anos.
"Eu ansiava pela chegada dessas noites;
parecia-me um glorioso alumbramento que histórias tão bonitas e às vezes
assustadoras pudessem sair daquelas bocas. Para mim o melhor eram aquelas
histórias nas quais a plateia se juntava para cantar o coro. A melodia era
invariavelmente cativante; eu sentia como se fosse transportado a outro mundo
de infinita harmonia, até mesmo na tristeza. Isso intensificava minha
expectativa do que iria acontecer em seguida." (p. 34)
Os impactos da Segunda Guerra foram sentidos
nas colônias, não apenas nas histórias que passaram a circular sobre os
"ogros" comandados por Hitler e Mussolini e sobre os heróis,
integrantes da comunidade, que estavam lutando pelo Império Britânico, mas
pelas dificuldades que afetaram a vida na colônia, como a dificuldade de
circulação de alimentos, que gerou períodos de fome e penúria em determinadas
áreas. Os primeiros contatos com os homens brancos, algo que marcou a memória
do autor e de sua comunidade, ocorreram em 1941, com os prisioneiros de guerra
italianos, incumbidos de construir uma estrada de ferro de Nairóbi até o interior.
A comunicação entre os italianos e os quenianos da aldeia se dava de forma
rudimentar, e chega a ser engraçado as recordações do autor sobre as palavras
mais recorrentes que ouviam, da qual deduziam um significado, e que passavam a
representar um povo. No caso dos italianos, dada a repetição, passaram a ser
apelidados de "Bono" por eles. A violência desses contatos, ainda que
de forma sutil, também é descrita pelo autor:
"Houve um tempo em que eu não mais via o
Bono Mayai caminhando ou pedindo coisas em nenhuma de nossas vilas. Eles não
voltaram. [...] Mas os Bonos deixaram sua marca arquitetônica na igreja que
ergueram perto da estrada na borda do Vale Rift em suas horas de descanso, e
sua marca sociobiológica nas famílias desfeitas e nos bebês pardos, sem pais,
nascidos nas várias aldeias que haviam visitado" (p. 44)
Com o fim da guerra em 1945, o retorno
dos soldados, considerados os grandes heróis nesse imaginário
infantil, também descreve de que forma a guerra deixa suas marcas, não
apenas físicas, mas também psicológicas naqueles que dela participaram. A volta
do meio-irmão do autor, que para ele havia lutado nos campos de batalha, mas
que exercia na realidade um trabalho burocrático, sinaliza o desejo desse
menino por uma educação melhor, que até o momento só esse meio-irmão parecia
ter alcançado, e que para ele parecia um sonho impossível. Até o dia em que sua
mãe lhe pergunta se quer ir para a escola, e os dois fazem um pacto: ela arcará
com as despesas de mensalidade, mas precisa que ele faça sempre o seu melhor,
mesmo diante das dificuldades que enfrentará, como não poder levar algo para
comer ao meio-dia. É o desejo de aprender dessa criança, em uma escola com
costumes diferentes do seu (há uma passagem bonita sobre o estranhamento que o
jovem Ngũgĩ sente diante das orações silenciosas na escola - mais uma das
marcas da colonização britânica-, que ele levou tempo para entender ser a forma
que os colegas e professores rezavam, e que agora lhe era imposta) e a força
dessa mãe, sempre preocupada muito mais com o processo de aprendizagem do que
com os resultados, que transforma a vida desse menino através da educação.
"Percebo que mesmo as palavras escritas
podem transmitir a música que eu amava nas histórias, particularmente a melodia
dos coros. E no entanto isso não é uma história; é uma afirmação descritiva.
Não traz uma ilustração. É uma imagem em si mesma e, contudo, mais do que uma
imagem e uma descrição. É música. Palavras escritas também podem cantar"
(p. 67, sobre quando ele aprende a ler)
Os fios que tecem essas memórias
são feitos com a ternura e o olhar ainda inocente, cheio de esperança, que
costuma caracterizar a infância. Através das memórias por vezes singelas
de Ngũgĩ wa Thiong'o passeamos não apenas pelo tempo e por uma região diferente
da nossa, mas por uma parte da história pouco conhecida por nós: o olhar de África sobre a colonização. E vemos, aos
poucos, como cada uma das muitas histórias vividas e narradas por diversas pessoas contribuiu na
formação de um escritor.
***
Ngũgĩ wa Thiong'o nasceu em
Kamirithu, Quênia, em 1938, período no qual o país ainda era colônia do Império
Britânico. Autor de romances, contos, peças de teatro e ensaios, no fim da
década de 1960 renunciou à língua inglesa, ao catolicismo e ao nome de batismo,
James, e passou a escrever em gĩkũyũ, língua bantu. Em 1977, foi preso por
conta de uma de suas peças. Desde 1992, é professor de literatura comparada na
Universidade da Califórnia, Irvine.
Ngũgĩ wa Thiong'o. Sonhos em tempo de guerra:
memórias de infância. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015. Trad. Fábio Bonillo e
Elton Mesquita.
*Escolhi e recebi este livro como
cortesia da editora Globo Livros.
3 comentários:
Vi “Sonhos em Tempo de Guerra” na livraria e o que me chamou a atenção foi à capa (muito bonita!). Depois de conferir a sinopse fiquei interessada em acompanhar essa trilogia ainda não finalizada. Parece ser muito interessante. Pipa, tu viu que foi publicada outra obra do Ngugi Wa Thiong'o, neste caso pela editora Alfaguara: “Um Grão de Trigo”. Parece ser muito boa também. Bjs!
Oi!
Te sigo no Instagram e nunca tinha visitado seu blog... Amei! Parabéns guria!
vou fazer mais visitas e ler tudo =D
bjs ;*
Seja bem-vinda, Ana! :)
Lulu, também fiquei apaixonada por essa capa, realmente ficou linda! Ainda não li Um grão de trigo, mas parece bonito também.
beijos!
Pipa
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