domingo, 16 de agosto de 2015

A distância entre nós



A distância entre nós, que acaba de ganhar uma reedição linda pela Globo Livros, foi o livro que transformou a Thrity Umrigar em uma escritora com mais de 200 mil exemplares vendidos no mundo. Mesmo já conhecendo a escrita dessa autora indiana, não pude deixar de me surpreender com as diversas questões que ele aborda.

O livro tem duas personagens principais, Bhima e Sera, que, por serem mulheres, compartilham as mesmas dores: a opressão de um sistema patriarcal que reprime a liberdade das mulheres e a violência a que estão sujeitas em suas variadas formas. Mas aí a autora ganha muitos pontos: apesar de tudo que as une, existe a diferença de classes que separa as duas personagens e torna diferente as formas de violência que sofrem. Uma perspectiva que não deve ser desconsiderada quando falamos em feminismo.

Bhima trabalha como empregada doméstica na casa de Sera, que é casada com um homem rico, que a mantém em casa, sem poder trabalhar. Há uma cumplicidade entre as duas estabelecida em mais de vinte anos de convivência, pois ao longo desse tempo, apesar da distância social que as separam, estabeleceu-se entre elas uma solidariedade, visto que se ajudaram em diferentes momentos de suas vidas.

A vida confortável de Sera, aparentemente perfeita vista de fora, era na verdade um inferno. Casada com um homem agressivo, Sera era constantemente espancada por ele. Envergonhada por ter esse tipo de tratamento mesmo tendo uma família bem estruturada, formada por intelectuais, Sera se cala diante das agressões. É Bhima quem cuida dela diversas vezes, sempre a encorajando a reagir, a não aceitar esse tratamento. É bem interessante a forma como a Umrigar trata da questão da violência contra a mulher, mostrando que é um problema que atinge as mulheres também da classe alta, desconstruindo o mito de que só as mulheres das camadas mais pobres da população sofrem violência física. A violência psicológica também é abordada, e está presente no casamento de Sera que, mesmo depois da morte do marido, ainda sofre com as lembranças de anos de opressão e sofrimento.

A neta de Bhima, Maya, tem dezessete anos e aparece grávida, sem nunca dizer quem é o pai da criança. Na Índia, uma menina grávida sem  ter se casado está marcada para sempre como uma desonra para a família, pois tudo o que importa é o casamento. A violência desse sistema patriarcal afeta Maya profundamente, que passa a andar triste pelos cantos, deprimida, sem saber o que será de seu futuro. Com a ajuda de Sera, que decide que esta é a melhor opção para não comprometer o futuro da menina, Maya faz um aborto em uma clínica particular por estar acompanhada de Sera. Se estivesse acompanhada de sua avó, Bhima, que não tem dinheiro e não teria condições de arcar com as despesas de um atendimento particular, talvez a saúde de Maya e até mesmo a sua vida fossem comprometidas. E outra vez a Thrity Umrigar ganha pontos por trazer essa discussão à tona, mostrando a importância de discutirmos sobre a saúde da mulher e o direito que todas devem ter de tomar as decisões sobre o seu próprio corpo, independente da classe social a que pertençam.

Enquanto Maya sofre em silêncio pela gravidez seguida de um aborto ainda tão jovem, a filha de Sera comemora a sua primeira gravidez. E nesse momento a crítica social que Thrity Umrigar faz a esses diferentes mundos que coexistem sem quase nunca se tocarem demonstra toda a crueldade das desigualdades sociais.

Além disso, a autora ainda aborda a grande disseminação da AIDS na Índia, mostrando como as mulheres são mais vulneráveis à contaminação, muitas vezes pelos próprios maridos, também por não terem controle e autonomia para se protegerem e cuidarem de sua saúde.

Como já deu para perceber, apesar da narrativa envolvente de Thrity Umrigar, que é uma ótima contadora de histórias, esse é um livro sofrido justamente por sabê-lo real e, mais ainda, por saber que histórias como a de Bhima, Maya e Sera não ocorrem apenas na Índia, mas em nosso próprio país e em vários outros lugares do mundo. São histórias que estão mais próximas de nós do que gostaríamos. São muitos os temas tratados nesse romance e todos envolvem o universo feminino, o que só o engrandece: fala-se de aborto, de estupro, de violência doméstica, de assédio no ambiente de trabalho, na desigualdade ao acesso aos serviços básicos de saúde, de preconceito e também de injustiça.

Mas, mesmo sendo doloroso refletir sobre essas questões, é importante não esquecermos a importância dessa reflexão, principalmente nos dias de hoje. A distância entre nós é um livro que deve ser lido e compartilhado pelas reflexões sobre o feminismo que histórias tão dolorosamente verdadeiras como as das personagens nos possibilitam. É um livro excelente para discussões em um clube do livro, por exemplo. E hoje passou a ser o meu livro preferido da Thrity Umrigar.

UMRIGAR, Thrity. A distância entre nós. São Paulo: Globo Livros, 2015.

Thrity Umrigar nasceu em Mumbai, na Índia, em 1961. Mudou para os Estados Unidos aos 21 anos e trabalhou como jornalista por quase 20 anos. Atualmente dá aulas de literatura e escrita criativa na Case Western Reserve University, em Cleveland, e colabora com jornais como o The Washington Post e The Boston Globe. É autora de A hora da história e A doçura do mundo.

Escolhi e recebi este livro como cortesia da Editora Globo Livros.

3 comentários:

Izabela Santos disse...

Fiquei com muita vontade de ler. Estou acompanhando a leitura do Bastardas e esse tema sobre os direitos da mulher está me interessante bastante. Adorei a resenha.

abraços,

Iza.

Natália Calzado disse...

Não conhecia essa autora até que vi a Gabriela Francine comentando sobre os livros dela. Fiquei bem curiosa, principalmente porque os temas parecem ser bem fortes.
Ainda não fui atrás de nenhum livro especifico, mas está na minha lista de "autores que preciso conhecer"

beijos

Maira disse...

Lindo. Vi um vídeo da Gabi sobre os livros dessa autora e fiquei com muita vontade de ler alguma coisa dela. O triste é que já passei por várias promoções e nunca pensei em dar uma chance. Não ai aontecer de novo, rs. E acho que "a distancia entre nós" foi o eleito ❤